Correio de Carajás

Restos das sombras de crônicas não terminadas

Num armário da memória, coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas.

Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis.

Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade.

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Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são como essas que fazemos todo dia, que eu faço todo dia, repetindo o gesto já coalhado no ar como tigela de leite que se estragou por esquecimento.

Mesmo com essa dificuldade, vou juntando, acumulando, encerrando num escaninho. É ainda coleção se os materiais não guardam qualquer relação entre si? O que os conecta, que fio os liga? Sou colecionador se os itens dispostos se contrastam e repelem mais que atraem e completam?

Às vezes, uma crônica demora dias, semanas e até meses para ser parida, porque está na cabeça, à espera de uma inspiração para ser iniciada ou terminada. O grande dilema, às vezes, é começar mesmo. Escrever o primeiro parágrafo. Quando ele vai à tela do computador, me parece que está na hora de fazer nascer aquela crônica.

Tenho uma gaveta inteira repleta desses conteúdos não catalogados, uma seção da estante onde armazeno o incompleto, um cômodo apartado da casa destinado a tudo que é rastro sem ter sido caminho. Todo um setor da biblioteca para o inacabado, o não visto, o não lido.

Às vezes, confesso, dou spoiler a um amigo ou amiga sobre a próxima crônica, mas acabo frustrando a pessoa porque não foi aquele assunto o da publicação da quinta-feira seguinte. E vou empurrando com a barriga o tema a ser escrito.

Crio uma novela ou um ensaio, mas desisto antes da metade e nesse esforço me esgoto. Flerto com o fracasso. Mantenho essa criatura sem nome ou forma definida ao alcance da mão por algum tempo ainda, até finalmente entender que dali não resultará nada nem de bom nem de ruim.

Talvez a saída fosse fazer tudo aos bocados. Então eu precisaria de mais do que uma vida para terminar o menos ambicioso dos projetos. Um evangelho apócrifo, um novo manual de trânsito, uma lei redistribuindo as terras do imenso território de Marabá, um estudo concentrado sobre o mercado da autoestima.

Me contentaria mesmo com uma frase. Um conjunto limitado de letras enfileiradas sem que delas se exija qualquer sentido manifesto, tampouco que soem grandiloquentes ou acadêmicas, sequer prosaicas. Palavras ordinárias, em estado de dicionário, com que se vai ao supermercado numa tarde de domingo.

Outro dia formei algo assim, ao acaso. A justaposição de partes avulsas, peças sem encaixe natural que coloquei lado a lado sem motivo algum. Como passageiros de um ônibus apanhados à revelia. Nada harmônico ou agradável.

Olhei ao final e me pareceu algo possível, um corpo informe produzido por sabe-se lá que força animadora. É um mistério que exista, que murmure algo no meio da noite numa língua toda feita de adivinhação.

* O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.