“Admiro quem diz saber escolher pei-bufo, quem declara não ter angústia, os que ignoram dilemas… Os resolvidos. Mas também desconfio de suas horas solitárias, de seus desencontros, decepções e de seus abismos particulares…”
Acho que estou me transformando, sem perceber, em acumulador. Daqueles que a gente assiste na TV, que guarda em casa mil coisas que não servirão para nada e a gente tem pena de jogar fora.
Leia mais:É assim… acumulo e-mails que julgo importantes e, já já (me engano), digo que vou lê-los. Não rebolo no monturo virtual e, todos os dias, me angustio com a tela do computador que me avisa sobre os mais de não sei quantos mil e tantos não lidos e que vão ficando para trás.
E, mais ainda…, não sei quantos grupos de WhatsApp e aquele barulhinho enervante de chegadas e partidas de mensagens a cada fração de minuto…
Ir no carro, dirigindo, e ter a tentação de olhar se alguém entrou em contato com você…
Ter, no meio do trânsito, o ímpeto imprudente de digitar respostas ou enviar novas mensagens, escritas ou em forma de áudio.
Deitar-se e, antes de orar, transar ou desejar bom sono, se grudar ao tablet ou smartphone e esquecer de quem está ao lado, de você mesmo e até da televisão que grita uma solidão, mesmo quando o jogo que está passando ali seja do time preferido (no caso, o Mengão).
Antes, a TV era feito encontro de abelha com flor doce. Na sala, ninguém desgrudava dela e, um dia, a dependência a levaria ao quarto das intimidades… e para cada filho, uma.
Coitada, nunca imaginou que um dia seria menos.
Vivemos assim, angústia que vai e volta e transforma todo mundo em uma manada de ansiosos que quer consumir sempre mais e mais.
A impressão é que o tempo do celular expôs mais ainda o quanto se é esquizofrênico, carente e ansioso: homens, mulheres, moços e até infantes têm seus devaneios e mergulham na tela e esquecem-se dos que estão ao derredor.
E, mais ainda…, como a oferta de tudo passou a ser demais, o desespero bate e não conseguimos definir a primeira escolha. Medo de não ter tempo de experimentar a segunda, a terceira, a quarta… Ficar pra trás.
Oferta em abundância é bom, mas a novidade pode ser uma armadilha. Falsa sensação de perder tempo com o que é simples.
Daí não nos refestelarmos mais com o gosto bom e sofisticado que o baião-de-dois com ovo estrelado pode ter. Que o peixe assado na folha de bananeira o deixa mais suculento do que no forno, com aquele alumínio.
Admiro quem diz saber escolher pei-bufo, quem declara não ter angústia, os que ignoram dilemas… Os resolvidos.
Mas também desconfio de suas horas solitárias, de seus desencontros, decepções e de seus abismos particulares…
O tempo smartphone é deslumbrante e, à mesma hora, uma solitária e um pingo d´água a cair na testa.
São as velocidades, os dias ligeiros… o coletivo virtual e o encarceramento do “pobe vei” dependente. Dependente de ficar com celular na mão mesmo quando vai visitar um amigo ou quando entra no consultório e o diálogo com o médico começa.
Queremos sempre ser lembrados, receber mais notificações no PV do que em grupos. É a síndrome de Oscar Wilde: “Falem de mim; bem ou mal, mas falem…”
Li que se checa, em média, 40 vezes por dia o celular para ver se os outros lembraram de nós… Me iludo dizendo que não estou entre esses abestados.
E vou tendo minhas dependências prediletas…
* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira