Correio de Carajás

Sobre a dura diáspora que assistimos todos os dias

Um amigo mandou mensagem no WhatsApp no último final de semana e lançou pedido de socorro: “não aguento mais ouvir falar de guerra”. E eu entendo que, depois de dois anos de cobertura ininterrupta sobre a covid-19, estejamos já saturados de assistir “em direto” um novo tsunami de imagens, dados e opiniões, vindo das transmissões ao vivo. Agora da invasão na Ucrânia, a guerra que acampou também na nossa sala de visitas ou na tela do celular.

Indigestão de tanto ver? Dor de barriga do excesso dos “em direto” e “breaking-news”, noite e dia? Azia de ingerir demasiados comentários e opiniões? De minha parte, ando com taquicardia das más-noticias, escaladas, sem-freios e sem-fins.

Diante da minha televisão, transitando pela sala ou instalada no sofá, faço parte dessa imensa “diáspora de telespectadores”. Ou, mais precisamente, “diáspora de circunstâncias”.

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Para ver mais largo o sentido de “diáspora”, fui buscar as palavras do cientista social Robin Cohen, que entende o termo como um “espaço transnacional”, cuja pátria é uma “terra adotada emocionalmente, que cruza culturas”. O que, de certa forma, coloca-nos nesta posição de “comunidade imaginada”, em sintonia com todos os outros telespectadores reunidos no “momento do aparecimento de um acontecimento, posto nas praças públicas do mundo pela televisão”. Todos ligados pelo mesmo desejo, o de “voyeurismo e de compaixão”.

Assim, na nossa “diáspora de circunstâncias”, encaramos os olhos vazios de Putin e eles nos acertaram na cara, como um vento frio vindo do Leste. Já Zelensky, o presidente ucraniano, sobre quem nada sabíamos até alguns dias atrás, tornou-se o novo herói planetário. No papel da sua vida, vemo-lo como um David lutando contra um Golias. Aliás, o mercado televisivo mundial disputa já os direitos de exibição das três temporadas da série de comédia que ele fez – em português, o título é Servo do povo.

Assim, é bem possível que logo mais, nos melhores canais dos nossos pacotes de filmes, e em paralelo às coberturas simultâneas sobre o avanço dos tanques, bombardeios, destruição de cidades e mortes, possamos também sentar confortavelmente diante das nossas tevês para ver Zelensky, dessa vez interpretando um professor de liceu que, indignado com a corrupção no seu país, acaba eleito presidente. Vejam lá a ironia do destino. As coincidências entre a ficção e a realidade.

No mesmo noticiário, soubemos também que a cabeça de cera de Putin foi atacada, insultada e despenteada pelos visitantes, no Museu Grevin de Paris, na França. O que levou à direção retirá-la da exposição e guardá-la bem guardada, no fundo de uma caixa.

À rádio France Bleu, Yves Delhommeau, responsável pelo Grevin, afirmou que, pela primeira vez na história do museu, uma estátua foi retirada por causa de eventos históricos em andamento. No lugar dela, poderemos ter em breve a cabeça de cera do agora popular e mediático Zelensky.

Assim, entre o impacto da realidade que nos chega ao vivo e o da realidade espetacularizada, comentada, analisada, esmiuçada e encenada nos estúdios (na repetição exaustiva dos acontecimentos e jogos de propaganda dos dois lados), nós, telespectadores dessa “diáspora” imaginada, vamos tomando partido, formando opiniões. E, podem apostar, isso tem impacto de balas de canhão.

Nas últimas duas décadas, a maior parte das guerras contemporâneas são ganhas nas telas. No campo de batalha só se conseguem vitórias. Nas telas, ganham-se as guerras e conquistam-se as opiniões públicas”. E, na arena de opiniões, a Rússia de Putin já perdeu feio.

E nós, aqui, na longínqua Marabá, já temos lado, já temos o herói e o anti-herói – cada um do seu jeito.

* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira