Correio de Carajás

O perdão (in) delicado de Dona Carmelita Medrado

Foto: Divulgação

Era noite chuvosa e o vizinho bateu na porta para avisar que o gato tinha ficado pelo lado de fora. E Carmelita levantou, acendeu a lâmpada do quarto, depois da sala e atendeu o homem simpático que estava com o siamês na mão. Pesava quatro quilos e meio e com a chuva parecia estar com cinco, de tão enxarcado.

O fato se repetiu pelas 12 noites seguintes e Osvaldo passou a desconfiar daquela trama com nuances de um triângulo amoroso, acreditando que o gato estava sendo aliciado em troca de ração Wiskas premium para encontrar um jeito de sair de casa, ser encontrado pelo vizinho, que aparecia depois na porta da dona todo faceiro e piedoso.

Carmelita e Osvaldo estavam casados há 26 anos, tiveram quatro filhos, cuidavam da segunda neta aos finais de semana e não tinham problemas maiores de relacionamento. A não ser o fato de ele sempre deixar o shampoo aberto, com a tampa caída no banheiro.

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Carmelita era professora, dava aulas no estado durante o dia e à tarde atuava como técnica agrícola de uma ATER, uma empresa de assistência técnica rural.

E foi lá que ela conheceu Felipe, o vizinho encontrador de gato na madrugada. Até então, os dois eram apenas colegas de trabalho. Mas o interesse dele por ela foi crescendo a tal ponto, de ele procurar saber praticamente todos os detalhes da vida dela, sem ela saber. Descobriu de cara o perfume favorito, a xuxinha preferida para amarrar o cabelo, nome dos filhos, o chocolate branco que ela não abria mão todo final de tarde, e ainda o nome do pet mais adorado do mundo por Carmelita, que era Rosivaldo.

Aprendida e decorada toda a estrutura, Felipe passou a atuar nas sombras. Ela ganhou todas xuxinhas da loja que ele visitou, encomendou três quilos de barra de chocolate branco caseiro – os preferidos dela, além de ter atraído para sua casa o faceiro e gordo Rosivaldo.

Houve treinamento padrão militar para que o gato entendesse que Whiskas premium só estava valendo quando ele saísse de casa à noite, por uma pequena janela esquecida pela família e que dava para um corredor estreito.

O gato chegou a perder cerca de meio quilo nos dias de treinamento, mas foi recompensado com a deliciosa ração que ele não ganhava na casa de Osvaldo e da amada e idolatrada salve, salve Carmelita.

Osvaldo era um homem magro, apaixonado por futebol, mas também pelo seu trabalho como contador. Tinha um escritório com seis funcionários próximo à avenida Nagib Mutran e gastava dez minutinhos para chegar em casa a pé, lá mesmo na Cidade Nova, próximo à antiga casa do doutor Veloso.

Como não sabia e nem percebia as intenções do vizinho e colega de trabalho, dona Carmelita parecia ingênua ao gastar tempo conversando com ele todos os dias em sua sala e, às vezes, aceita convites para irem juntos à cozinha da ATER para tomar um café. Forte, avisava para ele.

Um dia, exatamente na décima terceira noite em que o gato surgia do nada na porta de casa, nos braços de Felipe, o marido estrovou. Mas não fez muito barulho. Preferiu ficar acordado nas seis noites seguintes até descobrir o caminho do gato para sair de casa e chegar à casa justamente de Felipe.

Quando descobriu toda a trama, fechou a janela, comprou Whiska premium para que o gato não sentisse falta de nada em casa e fosse para a casa do vizinho.

Quando sentiu que o malandro Rosivaldo não aparecera aquela noite, Felipe ficou perturbado e não conseguiu dormir o resto da noite. Como, então, iria conseguir ver sua musa do trabalho metida num baby doll curto, que ele já estava acostumado?

O marido foi com tudo para cima da mulher, brigou com ela, fez escândalo e disse que sairia de casa porque ela o estava traindo na porta de casa sob a tutela de um gato astuto e treinado para o ofício. Ela tentou todos os argumentos do mundo, mas nada fez o marido mudar de ideia.

Os filhos tiveram de chamar o padre, que fez de tudo para que Osvaldo se arrependesse da decisão, voltasse atrás e mantivesse o sagrado matrimônio.

Ele, então, apresentou uma condição para a mulher: que o gato fosse entregue no CCZ para ser eutanasiado. Dona Carmelita Medrado foi às lágrimas, esperneou, mas também aceitou, com uma condição. O marido deveria, todas as noites dali para frente, bater na porta da rua para ela ir abrir vestida de baby doll.

* O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira