Correio de Carajás

Vamos voltar a falar da vida alheia, por favor

Saio 19 horas na rua de casa e olho para os dois lados. Nenhuma cadeira na porta, nenhuma criança a brincar de esconde-esconde, não se joga futebol e nem bicicletas cruzam como um raio para um lado e outro pedindo passagem.

Morar em bairro de gente que chega em casa de carro e se entoca lá para dentro a noite toda é bom por um lado, mas depois de um tempo vai fazendo falta o cheiro de vizinhos na porta da rua.

Antigamente, à noitinha, a gente ia pra porta conversar com os vizinhos. Botava cadeira em roda, cobrindo toda a calçada e haja histórias de fada, do casarão assombrado, da visagem da beira do rio que assustava os meninos…Boiuna, Porca de Bobes, Mulher de Branco… Agora, é televisão, é computador, é celular. Até da vida alheia já se deixou de falar!

Leia mais:

Condomínio fechado é um deserto de gente que se tranca, que só se vê na academia, na piscina, na quadra de esporte e no salão de festa. Entre os mais de 100 moradores, ainda não vi um sentado na porta de casa conversando com o vizinho.

Não tem ladrão também. As casas não possuem muro na frente e as bicicletas e velocípedes ficam estacionadas na garagem sem cadeado e passam dias e dias ali, sem ninguém mexer.

Tem hora que eu até sinto saudade da rua sem asfalto em que morava no Belo Horizonte, com muita lama para chegar em casa no inverno e a poaca no verão. Os vizinhos se cotizando para juntar dinheiro e mandar jogar carradas de seixo e tentar amenizar o dilema comum a todos.

Nessa rua que eu morava antes, dona Zuleide comandava as potocas na porta de casa. Começava a conversar com uma ali, por volta de 17h30, quando o sol ia baixando e a sombra anunciava que o calor iria diminuir. Depois iam chegando duas, três vizinhas mais e o tom da conversa ia aumentando.

Às vezes, se falava de um vizinho de frente, do motorista de uber que batia na mulher quando chegava à noite e da esposa do comerciário que saía pra rua toda tarde de quarta-feira embunitizada, como se fosse encontrar com alguém e voltava antes do marido chegar em casa.

Toda cidade é vivida no plural. Marabá não foge à regra. Há uma cidade dentro da cidade que nem parece metrópole da Amazônia, da mineração. Ah, o território da conversa na calçada, da brincadeira no meio da rua, do varal estendido em frente à casa. Do vendedor de peixes passando, do espetinho vendido na esquina. Parece interior – e não é?

Basta “dar sombra”, e as cadeiras de plástico saem da varanda e tomam vento. Se não tiver muita coisa pra fazer, dona Rosilda já vai se sentando. Fica até tarde da noite, enche de gente ao redor e não tem ladrão que passe e tenha coragem de assaltar uma rua inteira.

Eu me meti nas conversas em várias ocasiões, embora minha esposa não seja chegada a falar por muito tempo com vizinhos. Mas numa roda assim, a gente conversa sobre tudo, principalmente os assuntos do dia a dia. Família, religião, política. E é bom.

Na Lauro Sodré, travessa onde nasci e permaneci até os 11 anos, na Velha Marabá, tem uma delegacia na esquina e os moradores ficam tranquilos. Parar por lá a qualquer hora do dia é possível puxar conversa com os Amoury, os filhos de dona Virgínia, os Athie e por aí vai.

Perto dali, na Getúlio Vargas, tem vôlei, mas os garotos invocam ainda outras modalidades, às vezes o futebol com travinha ou até mesmo o futmesa. Quando um carro passa, é balela: alguém fala um xingamento e a brincadeira é desfeita. Mas é só o automóvel sair e tudo volta ao normal.

Nessa simplicidade de não precisar de muito para ser feliz e driblar a velocidade da rotina, é fácil desbravar outras interioridades marabaenses. Preste atenção. No Cabelo Seco, e além, roupas estendidas em plena avenida formam um tapete vertical colorido e assimétrico.

No Belo Horizonte, cavalo e carroça transitando são comuns, invocando paisagem campestre. No São Félix, carrinho de mão levando frutas para a beira da rodovia para vender aos que passam de carro.

Na Santa Rosa, rabetas cruzam as ruas rumo ao rio montadas em cavalos de madeira.

Quem sabe se não é mesmo o interior?

 

* O autor é jornalista do CORREIO há 28 anos e escreve crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.