Correio de Carajás

Marabá: cidadezinha que ia indo até…se endinheirar

São 2 da madrugada de domingo. Já assisti a três episódios de uma série inóspita e me deu vontade foi de escrever minha crônica semanal. Então, resolvi trazer ao leitor aquilo que a memória mergulhou nos últimos dias, levada pelos eventos relacionados ao aniversário de Marabá, na última semana.

E a memória afetiva voltou à década de 1970, numa Marabá ainda “pobre”, que não tinha os luxos das décadas seguintes. A vida da gente praticamente se resumia na Velha Marabá, embora a Nova Marabá e Cidade Nova estivessem engatinhando em seus projetos habitacionais.

Naquele tempo, quando o peito da menina piava, era certeza de crise asmática. Só faltava morrer sem fôlego. ”Forgo”. Encostava o umbigo na espinha das costas, tentando puxar o ar. Abanavam ou a balançavam na rede da sala da televisão, não havia ventilador. Basculantes e portas abertas. O problema é que o aperreio, muitas vezes, invadia a noite avançada. Lá, em algum lugar dos derradeiros anos da década de 70, as coisas eram difíceis.

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Farmácias havia poucas, talvez por isso, no banheiro ou nas despensas das casas, existissem farmarcinhas pregadas nas paredes. Geralmente brancas com uma cruz vermelha no meio. Tinha do Melhoral infantil, doce como bombom, a injeções da temida Benzetacil. Terror da pivetada.

Pois muito bem, a asma vinha com tudo na madrugada e não havia farmácia aberta. O jeito era bater na porta da Farmácia Santa Luzia, de seu Eduardo e dona Zeca Bezerra. Ainda arriscava estar faltando o Aerolin spray ou Revenil expectorante. Passasse da hora, o jeito era correr na Farmácia São Miguel, na Avenida Antônio Maia, que também não virava a noite, mas a gente metia a cara pelas ferragens da garagem e gritava o nome dele.

Outro galho à vista. Como Marabá não era uma cidade 24 horas, as coisas pro pobre ficavam mais dificulitosas. Quem não morava exatamente na Velha Marabá, tava pebado. Quem ainda residia na longínqua Cidade Nova ou Nova Marabá e não tinham fusca não chegariam à Velha na madrugada. Mesmo que nada. Ônibus ou kombi iam só até 19 horas.

Táxi, além de caro, não tinha serviço de rádio ainda. Pegava-se nas ruas ou nos pontos específicos onde ficavam aguardando passageiros. O casal de fulanos e a desmilinguida asmática tinham de ir pra avenida movimentada do fim de mundo, no Km 7. Mesmo assim, passavam horas e horas futurando alma-viva que passasse na avenida num carro particular. Ou então, recorressem ao vizinho taxista. Não trabalhava à noite, demanda rara e um medo. Vez por outra faziam favor. Uns prestativos, outros acionavam a bandeira 2 pra cobrar mais caro. Tudo bem, mas iam e voltavam ser dar um pio. Aborrecidos.

Havia dessas coisas. É do mesmo tempo, ou encostado dele, os horários comerciais dos supermercados. O Botafogo e o Soraya, maiores de todos, abriam pela manhã e iam até as 18 horas. Acreditem. Mas nada de esquisito nisso, o ritmo de nossa aldeia era outro. Era o sicrano empurrando o carrinho e os empregados baixando as portas. Quem quisesse fazer compras, tinha de fazer cedo. Antes da hora das galinhas.

A meninazinha com asma não morria. Chegava perto. O remédio aparecia ou ela era internada, por dias, no Hospital do Sesp, que agora é maternidade. Caça a veia, injeção na cabeça e casa faltando um rebento. Escapava e voltava ao convívio do magote de casa.

Escapava-se vírgula. Tinha-se sorte e anjo da guarda. Por ela, passei a acreditar em anjos da guarda.

Teve sorte de não ter nenhuma tampa à prova de crianças em vidros de remédios, detergentes ou veneno de rato. De andar descalça no quintal das fossas e não ter virado lombriga. De beber água direto do rio cheio de caracóis. De tomar sobejo de coca-cola na boca da garrafa e correr o risco de pegar tuberculose ou meningite do amigo… De comer fruta caída no chão ou bicada pelo passarinho…Ah, besteira!

Era tudo assim, num ritmo quase parando. Mas aí vieram Serra Pelada e o minério de ferro pra nos dar dinheiro e tirar nosso sossego…

* O autor é jornalista há 28 anos e publica crônica às quintas-feiras

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.