Correio de Carajás

Meu amigo tinha medo de morrer em noite de domingo

Quando eu o conheci, era um adolescente bem-humorado. Morava na Folha 28 com os pais e outros dois irmãos. A família vivia de um comércio sortido que seu Chico mantinha na sala de casa. Arnaldo era caçula e cresceu entre as missas dominicais da Igreja Católica, aulas no Pequeno Príncipe e futebol com amigos no Piçarrão. Pra que vida melhor?

Depois, quando se tornou adolescente, sua mãe decidiu batizar-se numa igreja evangélica e ele partiu na mesma direção. Seu programa favorito eram os retiros espirituais, principalmente no período do carnaval. Jogava futebol pela manhã, tomava banho no Geladinho a tarde toda e, à noite, aos 14 anos, era a sensação nas rodas dos colegas – até mesmo os mais velhos – pelas piadas jocosas que contava. Na verdade, ele se revezava com seu irmão, mas era Arnaldo quem ganhava mais aplausos.

E foi com essa popularidade das piadas que ele conquistou e pegou muitas menininhas da igreja. Sandra, uma loirinha oriunda de Santa Catarina estava na lista e foi a única que derreteu o coração do garoto da Folha 28. “Essa é pra casar”, ele dizia aos colegas, mas aos 19 anos não estava mais ao lado dela. A garota foi embora para Açailândia com os pais e ele teve de se contentar com as coleguinhas dela que ficaram por aqui.

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A mãe de Arnaldo e sua irmã transformaram parte da residência da família em escola, que aos poucos foi ganhando mais e mais os cômodos da casa. De lá, tiravam a maior parte do sustento da família e o caçula já trabalhava e pegava boa parte das professoras do educacional.

Deixou a igreja quando passou no concurso da Prefeitura de Marabá e descobriu o prazer da cerveja, a farra com os amigos e uma legião de mulheres gatas nas baladas aos finais de semana.

Numa noite de domingo do ano de 2000, seu pai sofreu um AVC. Esposa, os outros dois filhos e vários primos correram para acudi-lo e o acompanharam do lado de fora do Hospital Celina Gonçalves. Só Arnaldo não apareceu. E nem era encontrado. Estava bebendo com amigos e seu paradeiro era desconhecido. Um primo percorreu 17 bares da cidade onde imaginava que ele poderia estar e o encontrou por volta de meia noite.

Estava tão bêbado que os irmãos não lhe deixaram ir ver o pai. No dia seguinte, apesar da ressaca, acompanhou o enfermo e passou a segunda noite com ele. O velho pai se encheu de orgulho e comentou que aquela foi uma das maiores alegrias de sua vida. No dia seguinte, depois de receber alta, o patriarca voltou a passar mal e acabou falecendo.

Arnaldo ficou traumatizado. Por que não estava sóbrio e junto ao pai quando ele passou mal, no domingo? Daquela data em diante ele passou a achar que morreria num domingo à noite.

Passou por dois casamentos, teve duas filhas e os negócios lhe davam renda suficiente para construir uma boa casa, comprar carro e viver sem grandes preocupações. Abandonou o futebol com amigos depois de deslocar o ombro pela 12ª vez, num futebol numa noite de domingo.

As festas continuaram sendo seu maior prazer e sua razão de viver. Anos depois, numa noite de domingo, ele envolveu-se em um acidente quando retornava de uma festa, atropelou uma pessoa, que morreu no local.

E, mais uma vez, o fantasma de domingo à noite o assombrava. Arnaldo, então, mudou seu hábito. Só bebia em casa no Cidade Jardim, e chamava os amigos para resenhas regadas a churrasco e bebidas que começavam na tarde de sexta-feira e só terminavam sábado à noite. O domingo era sagrado. Ele isolava-se em casa, não saía e não recebia ninguém.

A mãe de Arnaldo morreu em 18 de maio de 2020, numa segunda-feira ao meio dia, vítima de covid-19. Depois de passar mal em casa, Arnaldo foi levado para o Hospital Municipal de Marabá, onde faleceu em 18 de outubro de 2021, numa segunda-feira ao meio-dia, aos 44 anos de idade.

E, coincidentemente, os domingos que antecederam a morte de mãe e filho foram de certeza de que o fim estava chegando dali a algumas horas. Na segunda cedinho os dois apresentaram sinais vitais que apontavam para uma recuperação, mas a morte veio inapelável para ambos ao meio-dia.

* O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.