Correio de Carajás

Margô amarga a dor do estupro em família

Margarete Novaes (troquei o nome) saiu da Vila União em disparada em direção a Marabá. Eram 7 horas da manhã quando meteu a camionete no estacionamento da Havan. De lá, ligou para a irmã, que mora na cidade e queria a companhia dela. Não antecipou o assunto, apenas chorava.

Com a irmã por perto, teve coragem de continuar a viagem em direção à Delegacia da Criança e Adolescente, onde foi registrar um boletim de ocorrência e pedir a prisão de seu marido atual, que na noite anterior havia estuprado a filha dela.

Como mãe de uma menina de 11 anos, Margô, como era conhecida, não se acovardou e nem escondeu das autoridades o que ocorrera. Sabia que dependia dele para a sobrevivência, mas colocou a segurança e saúde de sua filha em primeiro lugar. Um mês depois, aquele episódio continua mexendo com ela – e com a menina. A mãe não poupou o companheiro e deu coro à voz de que esse tipo de crime não pode continuar sendo naturalizado: os estupros em família.

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Ela está ciente, mesmo com a possíveis consequências na vida da criança. As duas – mãe e filho – estão sendo ouvidas e acompanhadas por uma rede de proteção e cuidados psicológicos. Bom se fosse assim, também, em todos os casos. Não é.

O estupro é uma medonheza. Estupro em família, em qualquer idade, é tão violento quanto o estupro coletivo. Imagine aí, a conivência de parentes próximos, morando debaixo do mesmo teto ou convivendo em alguns dias ou na Semana Santa e Natal.

Geralmente, a gente diz que só um da família estuprou. O tio, ou o avô, ou o pai, ou o primo, ou o irmão, ou o padrasto, ou o namorado da mãe… E o resto dos parentes silencia ou propõe que a “roupa suja” seja lavada em casa. Aí se completa o ciclo bárbaro do abuso.

A menina de Margô não confiou de pronto em ninguém da família. Nem na mãe nem na tia. Ela não teve confiança em contar quando foi abusada pela primeira vez pelo padrasto covarde.

Somente falou à mãe depois de ser violada pela segunda vez. Achou alguma confiança e foi acreditada por Margô. Quantas e quantos dão sinais e ninguém percebe, não acredita ou faz de conta que está tudo normal?

Tinha uma regra com os meus dois filhos. Breno e Brenda. Até exagerada, mas não me arrependo. Era lei lá em casa, ninguém tocava em algumas partes do corpo deles sem que a mãe e eu soubéssemos. Beijar na boca ou beijos às escondidas, eles precisavam nos dizer.

E se eu tocasse diferente na vagina, pênis e bunda deles, eles diriam à mãe. E se a mãe fizesse o mesmo, eles me contariam. A mãe deles e eu só tocaríamos por ocasião do banho, para limpar o cocô, xixi, se tivessem doentes e se fosse imprescindível.

Fora nós dois, ninguém mais tocava nas partes íntimas deles nem beijaria o corpo se não estivéssemos por perto. Avôs, tios, babás, primos, o próprio irmãozinho. Vizinho? Nem pensar. Carinho sem maldade não ultrapassa os limites da vida privada de uma criança.

Na época, queria saber da vida invisível deles. Perguntava sobre o tio gentil demais? Por qual motivo ganharam presentes ou bombons fora da época de aniversários e festas? Pode ser noia e acho que assustava, mas faria de novo.

Fiz terrorismo, é verdade, mas cercado de conversas, peças de teatro, histórias para boi dormir, livros, filmes e o que fosse. Não estou dizendo que isso é o exemplo para evitar o abuso e, por isso, não enfrentei histórico de violação. Não. Era o recurso que eu tinha e acompanhava muitos casos pelo jornal.

Nunca me relataram estupro ou importunação, podem ter omitido por não confiar em mim e na mãe. Penso que não, não identifiquei algo fora da curva em nenhum dos dois. Pode ter e passei batido. Em família, na rua e na escola. Até hoje, não houve revelação.

Noutro dia, uma amiga me contou que o irmão mais velho a estuprou. Um trauma até hoje. Ele se casou, passou em um concurso e, depois, foi embora para outro Estado.

Ela também se casou, nunca falou para o marido e amarga, depois de adulta e mãe, o incômodo indizível de se encontrar com o irmão estuprador toda vez que vem a Marabá.

O irmão é visita paparicada na casa dos pais e em família. E ela nunca teve confiança para contar à mãe, para o pai ou para uma irmã. Também nunca sobrou dinheiro para uma terapia continuada. O corpo dela ainda ressente…

* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira