O que antes para mim era apenas uma sensação, agora tornou-se uma percepção clara: a infância é uma morada que une todas as crianças em seus mundos de brincadeiras. Vão-se os anos, passam-se os tempos e constroem-se caminhos, mas, observando isso ou não, nunca deixamos de habitar a nossa meninice. O endereço permanente da existência é a infância, e ela também tem uma morada, que é o lugar onde cada menina e cada menino apreendem o mundo pelo ato de brincar.
Nesta terça-feira, retornei de uma viagem à Fortaleza com a família e chegamos por volta de 15h30. Desci as malas, troquei de roupa e rumei com a Ester – nossa garotinha de 11 anos – para a Marabá Pioneira. Fomos ver a enchente nas ruas, as pessoas retirando seus móveis de dentro das casas e repetindo uma sina de décadas, tangidos pela cheia do Rio Tocantins.
Uma das maiores alegrias que eu tinha, quando criança, era aos finais de semana, quando meu pai me levava para o rio, para a gente brincar juntos. Ele me desafiava de cabeça mergulhada e enchia uma garrafa de 51 dentro d’água, num exercício de apneia.
Leia mais:Não importava qual ponto do rio Itacaiunas ou Tocantins, a diversão era certa e nos dava toda sorte de sustento. Tudo isso construiu o conjunto referencial da minha morada de infância, de onde, sem me distanciar, parti para onde deu vontade de ir.
Mas nesta terça-feira, além de percorrer algumas ruas, eu e Ester queríamos a diversão também. A gente estava com roupa de banho, porque eu acompanhava as notícias e sabia que o nível do Rio Tocantins estava próximo da orla. Eu queria pular, quebrar bubuia com a garotada que certamente estaria lá por perto do treiller da PM (e estavam mesmo).
Revivi os dias em que eu e alguns colegas matávamos aula na Escola Plínio Pinheiro na década de 1970 para banhar no rio. Era um reencontro com a criança que fui; aquele menininho que passava horas pulando de cima de barcos, comendo castanha, brincando do trisca e fazendo “cu de pato, cu de pinto” na volta para casa, para tirar a vermelhidão dos olhos. São acontecimentos que se transformaram em lembranças e pensamentos.
A tarde de terça-feira estava ensolarada, diferente dos dias anteriores. Havia mais de 20 adolescentes e jovens pulando no rio, num vai e vem sem fim e na disputa de quem ia mais longe, de quem dava o mortal mais invocado e a cabeça branca denunciava que eu estava fora do grupo da molecada.
Como não dou mais saltos, apelei para um desafio de natação na água, para saber quem iria mais longe. Apostei vinte pilas e a galera vibrou. Escolheram os candidatos e partimos descendo o rio até a rampa do final da Praça São Félix. Acabamos descendo em velocidade, mas no meio do caminho nossa disputa virou uma confraternização. Ester foi também, porque ela está treinando para atravessar o rio no verão.
Ao final, um dos garotos, de 15 anos, disse que o “tio de cabeça branca manda bem”. Não sei se foi um elogio, mas paguei um lanche para eles e conversamos sobre enchente, brincadeiras na Velha Marabá e volta às aulas.
Rildo Brasil e outros amigos que passavam pela Orla não acreditavam o que viam: um cara quase da terceira idade usando a tarde para um rolê no rio com a molecada. Tiveram de me ver pular por cima da grade e cair de pontinha no rio para acreditar.
E ali, naquela paisagem bucólica, de por do sol incrível, a gente terminava o dia após uma viagem de 1.500 quilômetros na terça-feira.
* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira