Correio de Carajás

Belo Monte quer erguer muros quilométricos dentro do rio Xingu

Projeto da Norte Energia prevê ‘soleiras’ de até 1,5 km de extensão, com base de 83 metros de largura dentro da água

Construção de hidrelétrica, no Pará, causou o esvaziamento de um trecho de 130 km de extensão/ Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Depois de causar o esvaziamento de um trecho de 130 quilômetros de extensão do rio Xingu para encher seu reservatório, a hidrelétrica de Belo Monte pretende, agora, erguer uma série de muros gigantescos dentro do leito do rio amazônico, no Pará. A ideia é formar uma cascata de lagoas artificiais abaixo da usina e, assim, aumentar o volume de água desviada por suas barragens.

A Reportagem teve acesso a um projeto que a concessionária Norte Energia, dona de Belo Monte, encaminhou ao Ibama, como forma de minimizar a situação crítica que a usina impôs à vida no rio e aos seus milhares de habitantes desde 2015, quando fechou seu reservatório no trecho conhecido como Volta Grande do Xingu.

Assim como a usina, o novo plano é faraônico. O projeto prevê a construção de ao menos sete “soleiras” dentro do rio, em estruturas que teriam até 1,5 km de extensão. Com formato similar ao de uma “pirâmide”, esses diques teriam uma base no fundo do rio de até 83 metros de largura e subiriam para fora da água, chegando a seis metros de largura em sua extremidade. Na maior parte do tempo, esses diques ficariam visualmente expostos, formando um tipo de labirinto no Xingu.

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Dado o porte das soleiras, a estimativa é de que a construção de apenas um dos muros deve levar cerca de sete meses, removendo milhões de toneladas de pedras e sedimentos para a área.

Uma equipe técnica do Ibama analisou a ideia em março do ano passado, por meio de um parecer ao qual o Estadão teve acesso, apontou uma série de consequências negativas do projeto, como a dificuldade de navegação em determinadas áreas, além do “impacto visual” das estruturas.

“Embora a Norte Energia tenha um entendimento distinto, acredita-se que ocorrerá sim impactos sobre algumas rotas de navegação, especialmente rotas secundárias”, apontou o parecer técnico dos analistas ambientais. Os especialistas alertam ainda sobre “impactos temporários e permanentes sobre a qualidade das águas superficiais”, envolvendo o período das obras e, depois, a contenção de maior volume de água nestas áreas.

Apesar da recomendação técnica de que a obra “não seja autorizada por este instituto, considerando os impactos negativos resultantes da instalação dessas estruturas”, a diretoria do Ibama decidiu dar andamento ao processo no fim do ano passado, para que a Norte Energia detalhasse as informações e se posicionasse sobre os impactos apontados pelos agentes ambientais.

Questionado pela reportagem sobre o assunto, o Ibama informou, ainda em dezembro, que “não rejeitou a proposta técnica, mas entende que, para avaliar qualquer projeto, faz-se necessário apresentação de estudos ambientais fundamentados e os seus impactos, segundo legislação ambiental vigente”. A Norte Energia declarou que tem prestado todas as informações e que adequações foram feitas na proposta.

O drama da falta de água na Volta Grande do Xingu, que passou a ser um problema efetivo em novembro de 2015, quando a Norte Energia fechou a barragem principal da usina, sempre foi objeto de estudos e alertas que antecedem a concepção de Belo Monte e seu processo de licenciamento. As críticas vieram, inclusive, da atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que sempre expôs as controvérsias do empreendimento quando foi ministra da mesma pasta até 2008, no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em fevereiro de 2010, quando Belo Monte ainda era um projeto em fase de licenciamento, Marina escrevia um artigo publicado na Folha de S.Paulo, para afirmar que “a população indígena ficará prensada nas cabeceiras dos rios da bacia, em processo acelerado de exploração econômica e desmatamento” e que “a barragem, além de interromper o fluxo migratório de várias espécies, vai alterar as características de vazão do rio”. A ministra estava correta.

Para ser viabilizada, Belo Monte desviou a água do Xingu, com o propósito de formar um grande reservatório artificial e, assim lançar esse volume enorme de água em outro ponto mais adiante do rio, como forma de obter uma queda maior de água. Com isso, estrangulou um trecho de 130 quilômetros, que viu a vazão natural do rio – cheia e seca – ser trocada por um volume mínimo e constante de água, causando todo tipo de impacto ambiental que uma ação deste tipo é capaz de gerar, como a morte de dezenas de espécies de peixes, tartarugas e frutos, além de comprometer a subsistência de milhares de famílias espalhadas em 25 vilas do trajeto do rio, entre indígenas e não indígenas. Ao todo, a usina desviou uma média de até 80% da água para um canal artificial de mais de 20 quilômetros, onde foram instaladas as grandes turbinas da hidrelétrica.

Para justificar seu plano, a Norte Energia buscou exemplos de projetos do mesmo tipo realizados em outros países, como o reservatório no rio Jinjiang, na China; no rio Yodo, no Japão, e rio Danúbio, na Europa. Citou ainda dois casos de pequenas hidrelétricas no Brasil. Ocorre que nada se compara à dimensão do que a concessionária pretende fazer no Xingu, como deixa claro a própria área técnica do Ibama. “Os exemplos de empreendimentos que produziram inundações artificias projetadas apresentados pela Norte Energia são de proporções muito inferiores que a proposta sugerida para o trecho de vazão reduzida de Belo Monte”.

Por mais de dez anos, órgão como o Ibama, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), universidades públicas e o Ministério Público Federal alertaram para a situação trágica que poderia ser imposta aos 130 quilômetros de corredeiras, cachoeiras, ilhas, canais, pedrais e florestas aluviais que formam a Volta Grande do Xingu. Hoje, o MPF chama a atenção para “evidências científicas de que um ‘ecocídio’ fulminará um dos ecossistemas da Amazônia de maior biodiversidade”.

A usina de Belo Monte, que custou R$ 44 bilhões, tem uma potência total de 11.233 megawatts (MW), mas sua geração média no ano chega a 4.571 MW, por causa da oscilação do nível de água da Rio Xingu. Não por acaso, a viabilidade da usina foi questionada por ambientalistas e engenheiros credenciados na construção de barragens. Durante quatro a cinco meses do ano, a hidrelétrica tem que ficar praticamente desligada, por causa da baixa vazão do rio na época de seca.

NORTE ENERGIA

A concessionária Norte Energia afirmou que, desde o parecer técnico que apontava impactos negativos do projeto dos muros no Xingu, a proposta avançou no Ibama e passou por revisões. Segundo a concessionária, “as soleiras são medidas de mitigação físicas previstas no contexto do licenciamento ambiental” da usinas e sua avaliação faz parte da implantação de um novo “hidrograma ecológico de consenso”, ou seja, novas regras sobre a liberação de água para a região, de forma que não comprometa tanto o trecho.

O objetivo do projeto, segunda a empresa, “é ampliar a área de inundação de trechos de florestas aluviais e formações pioneiras que são fundamentais para a reprodução e alimentação de peixes, quelônios e toda a cadeia ecológica da Volta Grande do Xingu”.

A companhia afirmou que, apesar dos apontamentos dos agentes ambientais, “a navegação não será interrompida, pois uma das premissas básicas para a implantação das soleiras é não afetar as rotas permanentes de navegação – isto é, rotas que perduram o ano todo, indiferentemente do período hidrológico do rio Xingu”.

A concessionária também declarou que as sinalizações que serão instaladas “atenderão aos critérios da legislação e estarão próximas às soleiras”, indicando as rotas seguras de navegação. “A Norte Energia avançou muito na discussão do projeto com as partes interessadas, percorrendo uma agenda participativa cujos resultados já trazem aprimoramentos ao projeto previsto inicialmente, justamente com a contribuição desses atores.”

Segundo a empresa, houve um “processo participativo” para analisar o projeto e que “engajou gestores e técnicos do Ibama” e que “os espaços de diálogo estruturado também já contemplaram a participação de gestores da Funai e de lideranças das comunidades das Volta Grande do Xingu, que estiveram presencialmente visitando o modelo reduzido”.

A próxima etapa do empreendimento, afirmou a concessionária, será uma “agenda com os indígenas do território, acompanhados pelo órgão indigenista e respeitando todas as premissas de participação e protagonismos desses povos”.

A respeito do impacto na qualidade da água, a empresa sustenta que esses “impactos poderão ser percebidos de forma pontual e temporária durante a implantação das soleiras”, mas que o monitoramento “terá continuidade ao longo de todo o período de implantação das soleiras”. (AE)