Eu só queria um café e um salgado. A manhã ainda esquentava tímida quando me aproximei do portão de entrada do Hospital Regional de Marabá em direção aos vendedores ambulantes que ficam por ali, quase grudados no estacionamento. Foi então que vi aquele garoto sentado no meio-fio, com uma mochila encardida entre as pernas e os olhos grudados num ponto vago do céu.
Não parecia perdido, mas também não parecia inteiro.
“Bom dia”, soltei, quase automático, enquanto passava por ele. Ele respondeu com um aceno curto, mas suficiente para que eu puxasse conversa. Gosto de histórias, e a dele estava gritando por dentro daquele silêncio.
Leia mais:Chama-se Miguel. Tem 17 anos, um rosto que ainda não decidiu se quer ser de menino ou de homem. Era de Canaã dos Carajás e estava aqui, em Marabá, havia pouco mais de um mês, “morando” dentro do hospital, como ele mesmo disse. Veio acompanhar a irmã, Larissa, de 16 anos, que enfrenta uma batalha dura contra um tumor que se alojou onde não devia.
“O quarto é dividido com outra paciente, mas o pessoal deixa eu ficar com ela. Dizem que sou educado. E eu tento ser mesmo. Eles já fazem tanto pela minha irmã…”
Miguel me contou que teve que largar a escola e o bico que fazia num lava-jato perto de casa. Disse isso sem rancor, como quem apenas segue a correnteza depois da enchente. A mãe deles, dona Sônia, não pôde vir. Está doente, fraca demais para enfrentar a estrada ou as noites em claro. Câncer também. Uma ironia que ele não verbalizou, mas que pairava entre nós, feito um incenso triste.
“É estranho, né?”, ele disse. “Eu vim cuidar da minha irmã porque minha mãe não pode. E, às vezes, eu fico pensando: se ela piorar, quem vai cuidar da minha mãe? Eu?”
Não soube o que responder. Apenas dei mais um gole no suco de cajá e deixei que ele continuasse.
Miguel não tem muitos familiares. O pai saiu de casa quando ele ainda era pequeno, e os tios estão mais ocupados com seus próprios dramas do que com os dele. O que ele tem, então, é o que carrega nas costas: algumas roupas, um celular velho e a força de um amor que não se aprende nos livros.
“Ela sente muita dor, mas não chora na minha frente. Acho que tenta ser forte por mim. Só que eu sei. Eu vejo.”
Me contou também que, nos intervalos em que a irmã dorme, ele se senta na recepção ou dá umas voltas ao redor do hospital. Vez ou outra, um técnico de enfermagem lhe dá um copo de café, uma enfermeira compartilha um lanche, e há dias em que até um segurança oferece uma palavra amiga.
“O hospital é bom, sabe? Eu não esperava que fosse assim. Eles cuidam dela direito, com carinho. E, mesmo eu não sendo paciente, me tratam com respeito. Isso faz diferença demais.”
Naquela manhã, Miguel ainda não tinha tomado café. “Às vezes, eu esqueço de comer”, confessou, como quem já se acostumou com a rotina do improviso. Contou que aprendeu os horários das medicações da irmã, os nomes de algumas técnicas de enfermagem, e até as trilhas sonoras do monitor cardíaco. “Quando o barulho muda, eu já sei que é hora de chamar alguém.” É como se ele tivesse se transformado num enfermeiro informal, movido mais pelo afeto do que por qualquer preparo técnico. E, mesmo esgotado, não reclamava. Era como se todo o esforço ganhasse sentido quando a irmã, mesmo fraca, sorria para ele.
O que me desmontou, confesso, foi quando ele tirou do bolso um papel dobrado várias vezes. Era um bilhete da irmã: “Obrigada por ficar comigo. Você é meu herói.”
Ele leu aquilo como quem recita uma prece, olhos umedecidos, mas firmes.
“Só quero que ela volte pra casa. Quero ver ela de novo rindo com os olhos. Mesmo que demore.”
Não sei quanto tempo ficamos ali, talvez meia hora. Mas bastou para entender que, às vezes, é no banco duro de um hospital, na beira de um meio-fio, que moram as mais puras formas de amor.
Voltei com meu suco, sim. Mas foi Miguel quem me alimentou.
Antes de nos despedirmos, perguntei o que ele queria fazer quando tudo isso passasse. Ele olhou para o chão, pensou um pouco e respondeu com simplicidade: “Voltar a estudar. E ver a Larissa dançando de novo.
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.