Correio de Carajás

João das Dores, Celeste da Luz e Ritinha dos Anjos

SONHOU AO CONTRÁRIO. Revirou-se na cama como se buscasse a saída do próprio corpo. Suava frio. O travesseiro escorregou e, sem entender o que era mundo e o que era sonho, tombou do leito. Sem sapatos, sem camisa, correu até a janela da frente. Abriu com força e despejou o pesadelo pra dentro da noite. Desde menino, alguém lhe ensinara que sonho ruim se espanta ao vento. Contar logo, que o vendaval carrega pro inferno e não volta nunca mais.

E ele contou.

ALIVIOU O PEITO e deixou porta e janela arreganhadas. Um vento levava a desgraça, outro soprava destino novo. Ele acreditava. Era de fé. Daqueles que acendem vela até pra promessa que esqueceu qual era. Voltou pro quarto, enroscou-se na mulher. Tocou-lhe o ombro, o braço, a cintura. Estava fria. Fria como telha à sombra.

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FOI FECHAR a janela pra ver se a friagem era a culpa. Não era. Enrolou-a com a manta grossa, tentou um chamego, uma reza, qualquer calor. Nada. Passou a mão pelo pescoço e sentiu a morte parada. Ficou sem saber se a ventania levara mesmo a urucubaca ou se deixara algo pior. A mulher, Celeste da Luz, morrera dormindo, sem aviso, sem deixar palavra. E o sonho, agora sabia, era prenúncio de luto.

NA VÉSPERA, sonhara com cobras. Um ninho delas dentro do colchão. Rasgara tudo com faca de cozinha, no sonho. Acordou suando, achou besteira. Agora, o corpo da amada parecia mesmo picado por algo invisível. Nenhum sinal. Só ausência. E um silêncio que feria como lâmina.

CASOU OUTRA VEZ. Depois de muito tempo, Ritinha dos Anjos lhe devolveu o sorriso. Mulher que fazia arroz com alho e sabia conversar com os passarinhos. Tirou-lhe o luto, mas nunca a saudade. Guardava um lenço preto no bolso da calça, como quem ainda tem promessa pra pagar. Ritinha sabia. Não brigava. “As finadas moram no peito, mas é a viva que dorme do lado”, dizia com brandura.

NA ÚLTIMA GRAVIDEZ de Ritinha, a ventania voltou. João das Dores acordou em desespero, os olhos pesados de lágrima sem motivo. O sonho era mais leve, mas nele viu a esposa sendo levada por um rio caudaloso, sem margens. Quando despertou, ela ainda estava ali. Mas dias depois, no parto da filha Clarinha das Estrelas, Ritinha escorreu junto com o sangue. Partiu em silêncio, como Celeste. A menina ficou.

ELE CRIOU CLARINHA sozinho, com ternura. A filha falava com o vento. Dizia ver sacis, ouvir sussurros de mãe nos redemoinhos. João não duvidava. Na varanda, punha cadeiras extras: uma pra Celeste, outra pra Ritinha. Tomava café como quem partilha presença. Era viúvo e não era. Tinha fé demais pra sentir-se só.

A VIZINHANÇA cochichava: homem de má sorte com mulher. Ele sorria. Dizia que sorte era tê-las tido, mesmo por pouco. E quando a solidão ameaçava, escrevia cartas pras que foram, deixava na beira do rio. O vento levava.

NA VELHICE, juntou-se a Luzia das Dores, mulher calada, olhos de enchente de 14 metros acima do nível normal no Rio Tocantins. Não a amava como às outras, mas a respeitava como quem conversa com o tempo. Não tinham filhos. Ela entendia o silêncio dele e ele respeitava o dela. Mas o amor, aquele de estremecer costela, já era memória.

NUMA MADRUGADA de junho, João sonhou com um campo florido, três mulheres de branco ao longe. Reconheceu os passos de Celeste, o riso de Ritinha, e os olhos que não conhecia – mas que lhe sorriam como antigos. Acordou com o peito cheio de paz. Levantou-se devagar, tomou banho, barbeou-se com capricho, e sentou-se na cadeira da varanda.

Não voltou.

Luzia o encontrou sorrindo, olhos abertos pro céu, o lenço preto dobrado sobre o colo. Ao lado, uma folha escrita a mão:

“Se o vento voltar, diga que fui com ele. Não porque fugi da dor. Mas porque enfim reencontrei o amor inteiro.”

 

 

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.