Correio de Carajás

A delicadeza de D. Ana de falar sobre si mesma

Foto/Reprodução

A primeira ligação que fiz para dona Ana Lúcia Lemos foi no final de uma manhã durante a semana. Ela não atendeu o número desconhecido. Eu me apresentei pelo WhatsApp e ela me retornou. Uma voz tão doce que parece de alguém que está falando com um sorriso no rosto.

Se desculpou pela ligação perdida e explicou que é de manhã a hora do dia em que ela se dedica ao jardim de sua casa ou às suas orações. A gestão da loja dela, agora, está sob o comando do filho, e ela conta, que os dois combinaram que ela deve descansar mais.

Entrei em sua loja para procurar uma calça preta, para usar em uma ocasião especial, mas fui tão bem atendido por um vendedor, que acabei perguntando de quem era a empresa. Por sorte, a idosa estava de passagem por lá e me encantou mais ainda a doçura de sua voz e profundidade de suas palavras.

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Uma fala sobre si mesma chama atenção pela simplicidade e poesia. Ela conta que o que aprendeu em todos os anos à frente de sua loja foi “viver com honestidade e fé”.

E mesmo que coincidências não existam, várias matérias desta edição do Jornal e também do Correio de Carajás voltam sempre ao universo da fé e da honestidade. A fé que embala o movimento junino, a honestidade consigo mesma de ser criadora de um negócio que transcende gerações ou se reconhecer pessoa trans. A fé de apostar em sabores internacionais e a honestidade de fazer comida de verdade.

Voltando à dona Ana Lúcia Lemos, ela me contou de como teve de sair de Marabá, na década de 1990, para poder viver um romance com uma gerente de uma empresa de transporte de passageiros que tinha chegado à cidade e passara apenas 11 meses. Foi bater em Teresina, onde as duas passaram a viver em uma quitinete que mais parecia um apartamento, todo mobiliado.

Lá, adotaram um filho de seis meses de idade e o pequeno Artur cresceu com duas mães numa época em que as críticas sociais eram mais mordazes, mesmo em uma Capital. Viajaram por várias cidades do Nordeste durante as férias de ambas e ensinaram o menino sobre a importância de respeitar a diversidade, numa época em que essa palavra não estava ligada à homossexualidade.

Os dias felizes chegaram ao fim em 14 de abril de 2004, quando a esposa de Ana Lúcia morreu, depois de lutar por dois anos contra um câncer de mama. Mesmo ali, na cidade de Teresina, conhecida por uma medicina bem mais avançada do que em outras cidades do Norte e Nordeste, ela não encontrou cura.

Abalada e se vendo sozinha naquela cidade, Ana Lúcia voltou a Marabá, depois de receber uma generosa pensão deixada por sua amada. Aqui, montou uma loja de confecções na Velha Marabá e o negócio prosperou. Abriu filial em Parauapebas e à medida que o filho crescia, passava a ajudar nas vendas e contratação de colaboradores, até que tornou-se gestor pleno.

A idosa diz que um AVC isquêmico a fez repensar o ritmo de trabalho e acabou mudando a rotina de trabalho. Aos poucos, começou a deixar a administração na mão do filho, que lhe repassa uma outra ajuda de custo valiosa.

Redescobriu o amor aos 62. Encontrou uma outra mulher oito anos mais jovem e agora só pensa em viajar – de novo, e de novo. E foi sobre essa nova descoberta que ela passou mais tempo conversando comigo, inclusive enquanto eu experimentava a calça de sarja, que tanto procurava.

Sua nova amada foi apenas seu segundo amor. Chegou em um momento em que estava insólita em sua vidinha e seu jardim que parecia não desabrochar.

Disse-me que as duas pretendem viajar de barco de Manaus para Parintins, só pra conhecer a cidade dos bois rivais – Garantido e Caprichoso. Perguntei quando voltam, e ela sorriu como quem já esperava esse questionamento, mas tinha a resposta pronta desde o dia em que marcou a viagem: espero que demore, meu filho, sem dia certo para voltar.

Aliás, não quero voltar.

 

* O autor é jornalista há 28 anos e escreve crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.