“Outro bairro que faz parte das minhas memórias afetivas da infância é o Amapá. Não o Amapá dos ricos, aquele das ruas cheias de casas dotadas de cercas elétricas e muros lá pelo meio do céu. É o Amapá dos pobres, lá debaixo, que se escora no Rio Itacaiunas e bebe das cacimbas por falta de água encanada”.
O Bairro Cabelo Seco me amanhece, já escrevi por aqui. Tenho sentido sua falta. Há mais de vinte dias não lhe faço uma visita de irmão. Tanto que já me veio em sonho, já choveu em minha janela e o cheiro de beira de rio não me deixa. Não moro em seus arredores. Não. Estou distante, mas faço parte dali. Por isso volto, preciso ressurgir. Lá estou sempre acompanhado, mesmo na sozinhez.
Outro bairro que faz parte das minhas memórias afetivas da infância é o Amapá. Não o Amapá dos ricos, aquele das ruas cheias de casas dotadas de cercas elétricas e muros lá pelo meio do céu. É o Amapá dos pobres, lá debaixo, que se escora no Rio Itacaiunas e bebe das cacimbas por falta de água encanada.
Leia mais:No Cabelo Seco eu fiz traquinagens quando menino e aprendi a me reconhecer negro e pertencente àquela comunidade já adulto. No Amapá, testemunhei um ir e vir de gente o dia inteiro quando o bairro era rota obrigatória para quem precisava ir para o Bairro Cidade Nova até o início da década de 1980. Os dois estão ali, separados apenas pelo Itacaiunas.
As casas espremidas dos dois bairros são icônicas e essa não é a única ligação que o Cabelo Seco tem com o Amapá. Há pobreza extrema em ambos, mas também há humanidade, menino zanzando nas ruas o dia inteiro e um quê de cidade parada no tempo. Ou pelo menos tinham.
Vejo léguas tiranas no “Amapá dos pobres” em que a destruição é igual ou pior a esquadrinhada no Google do “Amapá dos ricos”.
Esses dois bairros que são um retrato de uma Marabá do passado, agora estão em transformação e podem perder suas características. Ambos estão recebendo obras de infraestrutura da Prefeitura Municipal com recursos do governo federal.
O Cabelo Seco está ganhando um anel de cimento para separar seu povo da ligação direta com a água – definitivamente. Além disso, um mirante será erguido para proporcionar uma vista mais ampla do encontro especial do Rio Tocantins com o Itacaiunas.
No Amapá, o fenômeno da transformação se repete. Uma orlinha está sendo erguida e a Prefeitura fará a construção de quadra poliesportiva e instalará uma academia popular. Sim, turistas vão chover nos dois bairros a partir de então. Os moradores estão empolgados. E não é para menos.
Mas vejo com olhos de preocupação. Sim, porque os dois bairros estão em vias de sofrer um impacto maior que a justificativa “do progresso chegando”. A especulação mobiliária foi à frente. Está tangendo, aos poucos, moradores tradicionais, que se veem diante de ofertas de muito dinheiro (na verdade é muito pouco) em troca de suas casas de frente para o rio.
Os ricos estão se apropriando e construindo casas de dois pavimentos. Quem sabe, daqui a dez, 20 anos, só teremos um Amapá: o dos ricos. E o Cabelo Seco perderá sua identidade de bairro formado, principalmente, por descendentes de quilombolas. Aos poucos, estão se espraiando pela cidade e os parentes vão ficando distantes. A identidade cultural deixará de existir.
Quem leu até aqui vai achar que sou contra o novo ou mesmo avesso ao progresso. E não é verdade. Mas, antes de executar obras de grande impacto social, como estas, o poder público deveria realizar um levantamento e apresentar um projeto que incentivasse os moradores de áreas tradicionais (ribeirinhos e quilombolas) a permanecerem em seus imóveis.
Se um dia, o Amapá dos ricos engolir grande parte do Amapá dos pobres e os endinheirados da cidade expulsarem de vez a extirpe tradicional do Cabelo Seco, então não digam que eu profetizei. Não. Apenas notei um fenômeno quase irreversível acontecendo.
* O autor é jornalista do CORREIO há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira