Correio de Carajás

Um abestado esperando beija-flor embaixo do ipê

Esperei feito besta o beija-flor verde peixe. Terça-feira, quarta-feira e quinta-feira… Debaixo do pé de ipê amarelo às proximidades de minha nova casa. Essa moradia que tem vantagens e desvantagens.

Perto desse novo lar, onde eu e Ana Raquel nos metemos no começo deste ano, ainda não tem supermercado e nem mesmo uma quitanda por perto. Para comprar gás, água, ou uma dúzia de laranja que seja, precisamos pegar o carro e partir em direção ao Mateus, à feira da Laranjeiras ou outro comércio com pelo menos três quilômetros de distância.

Mas tem muitas, muitas vantagens. Uma delas é o vento permanente que nos açoita manhã, tarde e noite, a vista magnífica da Praia do Tucunaré, da Orla – de dia ou de noite – sempre é bonito.

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Outra vantagem é que é perto da mata, onde os pássaros estão sempre por aqui. E esse aqui é de onde escrevo a crônica de hoje, de onde gasto só três minutinhos para chegar à casa de minha amiga Vitória Barros. E perto, também, das castanheiras, um dos motivos de minha satisfação na fase em que estou da vida.

Um dia, quando sai cedinho para a academia, agora no mês de agosto, vi que havia beija-flor verde peixe num pé de ipê florido. Voltei em casa, peguei a câmera, ajustei lente e as outras configurações e fiquei ali, em pé, olhando para os cachos de flores e o ventin da manhazinha nos olhos. E ouvi de alguns sérios cidadãos que passavam, que iam ou vinham, apressados, cochicharem: “ó o besta!”.

Esperar beija-flor? Onde é que já se viu! Podendo tá fazendo algo que preste, escrevendo, ganhando dinheiro. Fazendo manchete? Não. Fica aí feito besta esperando passarim. É abestado, esse! Por isso é que o mundo não muda…

Que bocó? Esperar os agostos pra chegarem os ipês e tirar retrato de beija-flor no amarelo ou no branco? E iam enredando os que não queriam ser bocó ou menos bocó que o bocó que esperava beija-flor…

Pois então, enquanto eu esperava feito besta o beija-flor, lembrava de duas histórias bestas, que acho bonitas, sobre os que ficam feito besta olhando e ouvindo de outro jeito a vida.

Noutro dia, um amigo incontrável, Tarcísio Matos, me mandou o seguinte bilhete.

Querido cronista, impossibilitado de fazer crônica feito as tuas (um besta), envio-lhes alguns cajás e cajaranas que colhi por aí. Vi-os perto de uma cerca de sabiá e arame. Trepei, mesmo com a perna menos, fui lá e os tirei maduros pra ti, antes dos passarinhos. Faça bom proveito e brá.

Assim, pei bufo, vi que o mundo precisa mais de gente que fica feito besta. Pra deixar de ser normal. Fui a uma reunião de dependentes químicos e ouvi uma ex-dependente dizer algo que dá história tua: a coisa mais bela no mundo é um arco-íris. Se pudesse, teria uma na minha casa…

Nessa mesma reunião, um rapaz, exemplificando quão é praticar a solidariedade, disse que conheceu (e ajudou) uma família pobre e bem diferente.

Os quatro filhos do casal tinham problemas mentais, com certa gravidade. A mais velha já não ia mais pra escola. Os colegas caçoavam dela. E, triste, ao chegar em casa, enfiava-se debaixo da mesa, lá ficando o resto do dia. Aperreado, o pai teve de tirar a menina do colégio.

O rapaz do relato disse que chegou à casa deles – suja, descuidada -, à tarde, e teve a primeira surpresa: a menina (que ficava embaixo da mesa), ao saber que tinha estranho em casa, cobria o rosto com a própria blusa. E só tirava quando a visita ia embora. Foi assim por um mês.

A segunda surpresa: um dia, indo pela manhã, o solidário contou que deu um ‘bom dia’ pra tal menina e ela tirou a camisa da cara. Ele tinha descoberto a senha: dar ‘bom dia’ fazia ela ter coragem de mostrar o rosto.

Terceira surpresa: mesmo pobre e de pouca instrução, o pai dessas crianças era sábio, entendia a enfermidade dos filhos, não deixava ninguém tratá-los por doidins da rua ou abestados.

Feito besta, não me canso de esperar por beija-flores debaixo de ipês amarelos. Mesmo que as pernas doam. E acho mais belo no mundo um arco-íris e desejo que nenhum filho fique debaixo da mesa, com a blusa na cara, por causa dos colegas normais da escola.

* O autor é jornalista há 27 anos (um abestado) e escreve crônica na edição de quinta-feira

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.