O momento é de celebração, mas sem otimismo com o futuro da agenda ambiental no Brasil. É assim que ativistas, especialistas, diplomatas e investidores ouvidos pelo EL PAÍS receberam a demissão de Ricardo Salles do Ministério do Meio Ambiente. A promoção de Joaquim Alvaro Pereira Leite, que já atuava no comando da secretaria da Amazônia da pasta, não foi capaz de aliviar o setor, apesar de ele ser descrito como uma pessoa com menor capacidade de resistência às pressões externas que o “truculento” Salles. A expectativa é que o novo titular do Governo de Jair Bolsonaro possa utilizar sua experiência de mais de 20 anos como conselheiro da Sociedade Rural Brasileira (SRB) para azeitar ainda mais a aliança do Executivo com o Centrão, ajudando na aprovação de leis que regulamentem o “passar a boiada”.
“A saída do Salles é uma derrota para o projeto bolsonarista, especialmente para a área ideológica, mas não vejo razão para otimismo. Não teremos um ajuste de rotas até 2022”, afirma Natalie Unterstell, diretora-presidente do Instituto Talanoa de políticas públicas. “Salles sai assim como entrou: devendo para a Justiça. Recuso a chamá-lo de ex-ministro do Meio Ambiente, porque nunca o foi, não merece tal título. Sua falta só será sentida por madeireiros ilegais, grileiros e desmatadores de florestas. Mas o cenário não muda. Ele não está saindo por um problema de performance, é porque ele está sendo obrigado, por uma questão criminal. Bolsonaro sempre esteve muito feliz com ele. Quem entrar vai entrar, cumprirá a mesma agenda. Se não tiver a fim, será trocado”, afirma Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima.
Pereira Leite assumirá uma pasta que tem um histórico de resultados exitosos na agenda de destruição do sistema de proteção do meio ambiente. Muito antes da famosa reunião de abril de 2020, onde Salles defendeu aproveitar a pandemia para “passar de boiada” de reformas infralegais de desregulamentação, o Governo federal já tinha começado uma estratégia de guerrilha baseada na promulgação de atos (decretos, portarias, resoluções…) que visavam a fragilizar a política socioambiental brasileira. Uma das medidas mais relevantes aconteceu em abril de 2019, quando um ‘revogaço’ de normas acabou com diversos conselhos, afastando o controle social de áreas consideradas chave para o Governo Bolsonaro. Foi ali que o Fundo Amazônia, que recebe doações estrangeiras com o objetivo de promover ações de monitoramento e combate ao desmatamento na Amazônia legal, acabou sendo paralisado”. “Esse ato permitiu que o Governo identificasse conselhos que queria salvar. O Fundo tinha um comitê técnico que, deliberadamente, não foi retomado. O problema é que esse comitê consta do contrato do BNDES com os doadores, que queriam participação nas decisões. Assim, foi rompido o contrato, deixando 2,9 bilhões de reais acumulados no fundo”, explica Unterstell.
Leia mais:Segundo um levantamento feito pela portal Política por Inteiro, ferramenta de monitoramento do Instituto Talanoa, só em 2019 foram promulgados 45 atos com objetivo de desregulamentar e flexibilizar as normas vigentes. Alguns desses atos passaram totalmente abaixo do radar, como é o caso de um despacho, que nada mais é do que uma comunicação entre órgãos, que adotava um parecer que mudaria a aplicação da lei permitindo infrações ambientais na Mata Atlântica. O Ministério Público agiu para impedir a fragilização da Lei da Mata Atlântica. Eventualmente, o próprio Ministério do Meio Ambiente revogou esse despacho; porém, entrou com uma Ação de Inconstitucionalidade (ADI), questionando se a Lei da Mata Atlântica ―mais rigorosa, que tem como objetivo proteger os 12,4% restantes desse bioma ―pode se sobrepor ao Código Florestal. Essa estratégia se tornou comum: lança-se um ato e na iminência de uma derrota ―seja no Congresso ou na Justiça―, o ato é revogado e outro decreto, portaria ou resolução é lançado com texto diferentes, mas mesma tese; se não é possível, como no caso da Mata Atlântica, vale tentar questionar no STF. “Trata-se de um método para evitar o debate democrático no Congresso Nacional”, explica Unterstell.
Regulamentação de crimes ambientais
Ao todo, o Governo Bolsonaro promulgou 107 atos com objetivo de desregulamentar e flexibilizar as normas socioambientais. Muitos desses atos foram barrados pelo próprio Congresso ou mesmo pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “Tudo isso gera instabilidade institucional. Nós contamos 34 ações no Supremo ligadas a essa temática”, afirma a diretora-presidente do Instituto Talanoa. Mas o novo ministro não precisará seguir apenas essa cartilha de atuação, já que o Governo diversificou a estratégia neste ano com sua aliança com o Centrão. Agora, o currículo de Pereira Leite e sua proximidade com os ruralistas ―trabalhou por mais de 20 anos na Sociedade Rural Brasileira (SRB) e também foi produtor de café 1991 e 2002— pode ser de maior serventia que o de Salles. “Antes, eles tinham que tentar mudar normas por atos infralegais porque sabiam que se fosse para o Congresso, o Rodrigo Maia iria barrar. Mesmo assim, sempre tivemos a agenda em risco por causa da Bancada Ruralista, mas agora os ruralistas ganharam a presidência da Câmara, do Senado e da República. A boiada agora pode ser legal. A diferença é que os atos você reverte, uma lei alterada não reverte mais”, explica Marcio Astrini.
O Governo Bolsonaro colocou em marcha neste ano uma estratégia para regulamentar os crimes socioambientais por meio de projetos de lei. No mesmo dia em que Salles anunciou sua saída, os povos indígenas tiveram uma derrota na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara, com a aprovação do projeto de lei 490/2007, que representa um retrocesso nos direitos indígenas ao dificultar novas demarcações de terra — já paralisadas pelo Governo federal. No dia 13 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou na madrugada um projeto de lei que flexibiliza regras para concessão de licenciamento ambiental para determinados empreendimentos. O texto foi aprovado por 300 votos a favor e 122 contrários e prevê, dentre outras alterações, a dispensa de licença para obras de saneamento básico, manutenção de estradas e portos se forem consideradas de porte insignificante pela autoridade licenciadora, por exemplo.
Segundo a Adriana Ramos, assessora do Instituto Socioambiental (ISA), a pauta socioambiental converge vários dos setores que aprovam o Governo Bolsonaro. “No projeto de licenciamento, eles conseguiram uma maioria que não conseguem em outras pautas, porque uniu a bancada ruralista com mineração e indústria. Todos interessados em desregulamentação”, afirma. Porém, ela lembra que o Governo aposta muito em legislações que são inconstitucionais, como a 490, o que dá chance de reversão no Supremo. “Acredito que podemos paralisar essas leis no Senado e na Justiça.”
Pressão internacional
A saída de Salles reverberou em países como a França, onde o presidente Emmanuel Macron é um crítico ferrenho da falta de política ambiental do Governo Bolsonaro e pediu, inclusive, que os países da Europa boicotem a soja brasileira. “Continuar dependendo da soja brasileira seria endossar o desmatamento da Amazônia. Somos consistentes com as nossas ambições ecológicas, lutamos para produzir soja na Europa!”, afirmou em seu perfil no Twitter em janeiro. Um diplomata brasileiro que vive em Paris disse que, mesmo com Salles fora do jogo, não há expectativa de mudança por parte dos franceses.
Para Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), isso acontece porque uma coisa é o discurso do Governo, outra é a prática. “Quando Joe Biden assumiu, o Governo brasileiro se viu obrigado a mudar de estratégia para ter o mínimo de consonância de políticas climáticas. O Brasil se dirigiu para a Conferência do Clima do presidente dos EUA, pedindo recursos para resolver o problema da Amazônia, que estava em chamas. E, ao mesmo tempo, cortou as verbas de fiscalização”, afirma. Bocuhy vê se desenhando no horizonte “uma tempestade de judicialização dos atos do Governo no futuro”. “Ou desistimos da Constituição, o que é impossível num estado de direito, ou então teremos que fazer com que ela prevaleça. A gestão de Salles já deixou lacunas irreparáveis. O país está perdendo mercado internacional porque as exigências de governança ambiental já fazem parte dos requisitos para negociações”, diz.
A presidenta da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Kátia Abreu (PP-TO), chegou a fazer um alerta ao Governo na terça-feira passada sobre riscos de sanções ao Brasil, após a suspensão de negociações ambientais dos Estados Unidos com o país de maneira unilateral, informou a Agência Senado. “Os motivos podem ser as investigações contra o [então] ministro Salles, a atual paralisia no combate ao desmatamento ou ainda uma possível sinalização para a troca em paralelo dos embaixadores em Brasília e Washington. Não estamos ainda diante de um cenário de sanções no curto prazo, mas fica claro que um recado foi dado pelos americanos sobre as suas insatisfações no plano bilateral e a necessidade de mudanças no Brasil para a retomada do diálogo”, apontou a senadora.
Investidores internacionais enviaram nesta semana uma carta às embaixadas do Brasil nos Estados Unidos, Reino Unido, Holanda, França, Noruega e Suécia, solicitando reuniões para discutir as políticas ambientais do país, segundo informou o Correio Braziliense. “Estamos profundamente preocupados com a Medida Provisória 910 (recentemente alterada para PL 2633/2020), que foi submetida a votação no Congresso Brasileiro e que legalizaria a ocupação de terras públicas, principalmente concentradas na Amazônia. Caso a medida seja aprovada, incentivará a ocupação ilegal de terras públicas e o desmatamento generalizado, que colocariam em risco a sobrevivência da Amazônia e o cumprimento das metas do Acordo de Paris, prejudicando também os direitos das comunidades indígenas e tradicionais”, afirma o documento assinado por 29 investidores, que tem uma carteira de 3,6 trilhões de dólares em ativos.
Essa não é a primeira vez que empresários se mobilizam para cobrar providências das instituições brasileiras em relação à política ambiental. Em 6 de julho, uma carta assinada por presidentes de mais de 50 empresas foi entregue à Vice-Presidência da República e ao Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido por Hamilton Mourão, apontando os prejuízos de uma imagem negativa em relação à proteção da Amazônia. “Esse grupo acompanha com maior atenção e preocupação o impacto nos negócios da atual percepção negativa da imagem do Brasil no exterior em relação às questões socioambientais na Amazônia. Essa percepção negativa tem um enorme potencial de prejuízo para o Brasil, não apenas do ponto de vista reputacional, mas de forma efetiva para o desenvolvimento de negócios e projetos fundamentais para o país”, informa o documento.
Fabio Alperowitch, fundador da gestora de fundo ESG (sigla de Environmental, Social and Governance) Fama Investimentos, afirma que é muito cedo para saber se a saída de Salles terá como resultado alguma mudança na gestão da política do Governo. “Teremos que esperar para ver. Sendo pragmático, o chefe continua o mesmo, nesse sentido não dá para ter uma expectativa muito otimista. Por outro lado, quando a gente olha o ambiente político onde o presidente está numa situação de menos tranquilidade com CPI da pandemia, queda de popularidade e forte pressão internacional, é possível pensar que, ainda que ele seja contra uma agenda de mais atenção à questão ambiental, talvez ele não consiga segurar o tamanho dessa pressão”, diz. (El País)