Correio de Carajás

Post distorce entrevista para sugerir que médico Roberto Kalil Filho apoia uso amplo da cloroquina

Enganoso
Logo após deixar o hospital em que ficou internado por covid no ano passado, o médico Roberto Kalil Filho deu uma entrevista à Jovem Pan contando ter tomado cloroquina. O título da matéria foi “Recuperado, Dr. Roberto Kalil revela que tomou hidroxicloroquina e defende uso em casos graves”. O post verificado aqui, que foi feito no mesmo dia da entrevista e voltou a circular agora, traz como chamada: “Recuperado, Dr. Roberto Kalil revela que tomou hidroxicloroquina e defende: ‘Tem que ser utilizada'”. O post é enganoso porque em nenhum momento o médico defendeu o uso indiscriminado e, ainda no ano passado, disse “não ser garoto-propaganda de nada”. Em maio de 2020, quando o post foi criado, já se sabia da ineficácia do remédio, mas, hoje, um ano depois, os próprios fabricantes e a OMS não recomendam seu uso para covid.

 

  • Conteúdo verificado: Post de 8 de maio de 2021 no Facebook recupera reportagem de 8 de abril de 2020 da rádio Jovem Pan com o cardiologista Roberto Kalil Filho, alterando o título para afirmar que ele apoia o uso indiscriminado da cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada que tomou quando foi infectado pelo coronavírus, para tratar casos de covid.

É enganoso o post que usa afirmações do cardiologista Roberto Kalil Filho sobre a cloroquina para sugerir que ele apoia o uso indiscriminado do medicamento em casos de covid. A publicação, que foi feita no ano passado e voltou a circular agora, traz uma fotomontagem com o título alterado de uma reportagem da rádio Jovem Pan. No texto original, a chamada é “Recuperado, Dr. Roberto Kalil revela que tomou hidroxicloroquina e defende uso em casos graves” e, no post, “Recuperado, Dr. Roberto Kalil revela que tomou hidroxicloroquina e defende: ‘Tem que ser utilizada’”.

Leia mais:

Na entrevista à Jovem Pan, o médico contava como foi sua recuperação da doença e afirmava ter tomado hidroxicloroquina e outros remédios. Já naquela entrevista o diretor-geral do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês dizia: “Minha opinião é que independentemente das ideologias, devemos procurar minimizar o dano à população e evitar mortes. Se existe medicação com evidências que pode haver benefícios, aliada a outras medicações, numa situação desta, tem que ser utilizada e pronto. Não tem conversa”. Em nenhum momento ele defende a hidroxicloroquina como a única ou principal responsável por sua recuperação.

Em 10 de abril, dois dias depois da entrevista, Kalil afirmou para a Folha que não era “garoto-propaganda de nada” e que seu tratamento incluiu uma combinação de remédios, não apenas a cloroquina.

O post tira as afirmações de Kalil de contexto e utiliza-as um ano depois, quando o conhecimento sobre o uso da cloroquina contra a covid já está mais avançado. Em outubro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que o tratamento é ineficaz e, em março deste ano, passou a contraindicá-lo em casos de covid. No mesmo mês, quatro das seis fabricantes de cloroquina no Brasil já não recomendavam o remédio contra o coronavírus.

O Comprova tentou falar com Kalil, mas sua equipe informou que ele não poderia responder às perguntas.

Quanto ao autor da postagem no Facebook, a rede social não permitiu o contato direto com o perfil.

Como verificamos?

Buscamos as reportagens da rádio Jovem Pan sobre as declarações do médico Roberto Kalil, e o vídeo completo da entrevista concedida por ele ao veículo, no ano passado.

As assessorias de imprensa do médico e do Hospital Sírio Libanês, onde ele atua profissionalmente, foram procuradas, mas disseram à nossa reportagem que o cardiologista não teria disponibilidade para uma entrevista.

O Comprova não encontrou declarações diretas do cardiologista sobre o uso da hidroxicloroquina em pacientes da covid-19 após a publicação de diversos estudos que atestam a ineficácia do medicamento nesses casos. Por isso, buscamos em entrevistas e colunas assinadas por ele, em diferentes veículos, declarações recentes que dessem pistas sobre a visão dele sobre o assunto.

Também buscamos os posicionamentos da OMS e de fabricantes da cloroquina e verificações nossas para averiguar o que mudou sobre o conhecimento científico que se havia em maio de 2020 e no mesmo mês deste ano.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 12 de maio de 2021.

Verificação

Kalil e a cloroquina

A matéria publicada no site da Jovem Pan, em 8 de abril de 2020, tem o seguinte título: “Recuperado, Dr. Roberto Kalil revela que tomou hidroxicloroquina e defende uso em casos graves”. O texto se refere a uma entrevista concedida ao programa Jornal da Manhã, da emissora, na mesma data, e cita trechos das respostas do cardiologista sobre o uso da hidroxicloroquina no próprio tratamento, quando ficou internado por causa da covid-19, e no tratamento de outros pacientes infectados pelo novo coronavírus.

Na entrevista, Kalil, que ainda estava internado, se recuperando do quadro de covid, afirma que recebeu um coquetel de medicações diante da gravidade do próprio quadro. Entre os fármacos, ele confirma que tomou hidroxicloroquina: “Foram propostos antibióticos, anticoagulantes, oxigenoterapia e a hidroxicloroquina. Obviamente, eu aceitei sim tomar a hidroxicloroquina — embora todos saibam que não tem grandes estudos comprovando o benefício, eu acho que num paciente mais grave tem sim que ser ponderado o uso”.

Perguntado sobre o uso do medicamento mesmo em pacientes com quadro leve, o médico ressalta que não é infectologista, mas que acreditava que a hidroxicloroquina poderia ser um dos medicamentos utilizados no tratamento, desde que com acompanhamento médico. Kalil ressalta que a possibilidade deveria ser especialmente considerada diante da gravidade da pandemia e a possível demora até que surgissem estudos científicos robustos sobre a eficácia dos medicamentos.

Depois da entrevista, no mesmo dia 8 de abril, o presidente Jair Bolsonaro mencionou a entrevista de Kalil em um pronunciamento oficial em defesa da cloroquina. Dois dias depois, em 10 de abril, a Folha publicou uma entrevista com o médico, em que ele ressaltou que o tratamento incluiu outros medicamentos e a estrutura do Hospital Sírio-Libanês. “Eu não sou garoto-propaganda de nada. Eu sou garoto-propaganda do que salva vidas. […] É verdade que não temos grandes estudos científicos mostrando benefícios, mas é uma doença que mata. Se daqui a seis meses sair um estudo mostrando que a cloroquina não funciona, parabéns, fizemos o que tinha que fazer”, afirmou.

Hoje, diante das novas evidências científicas de ineficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19, o cenário é bem diferente do de abril de 2020. Roberto Kalil não chegou a declarar de maneira direta, à imprensa, o seu novo entendimento sobre o uso dos fármacos, mas há várias publicações em que ele afirma que não há medicamento contra o novo coronavírus.

É o caso, por exemplo, de uma uma coluna publicada no UOL, com uma conversa com a também cardiologista Ludhmilla Hajjar, publicada em 1º de março de 2021. O tema são as novas evidências científicas relacionadas à covid-19, e Kalil diz, ao final da entrevista: “Tratamento? Tem tratamento de suporte. Mas não existe um anti-viral. A arma é a vacina”.

No mesmo veículo, em 11 de janeiro, ele já havia conversado com o infectologista David Uip sobre a inexistência de medicamentos. No vídeo da entrevista, Uip diz que “hoje, nós damos suporte à vida. Nos casos graves, o que nós fazemos é isso: suportamos a vida. No sentido de fazer o que é possível para o paciente grave continuar vivo — e estamos conseguindo, na grande maioria dos pacientes, graças a Deus. Mas infelizmente — e eu insisto nisso, infelizmente — ainda nós não temos um medicamento preventivo”. E Kalil completa: “A única medicação pra evitar o vírus chama-se vacina”.

O Comprova tentou agendar uma entrevista com Roberto Kalil sobre o tema, mas a assessoria dele disse que o médico estava atarefado com a rotina de trabalho em dois hospitais, e não poderia atender à reportagem.

Ineficácia contra a covid-19

O apoio ao medicamento se disseminou após a publicação, em março de 2020 –com o coronavírus já se espalhando pelo mundo–, de um estudo conduzido pelo francês Didier Raoult. Segundo a pesquisa, o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. Mas o estudo foi alvo de críticas da revista Science, referência em estudos científicos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.

O então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, passou a apoiar o medicamento e, logo depois, Jair Bolsonaro (sem partido) encampou o mesmo discurso. Já em 21 de março de 2020, Bolsonaro anunciou que o Exército ampliaria a produção do remédio no país para pacientes com o coronavírus. Quatro dias depois, o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica autorizando seu uso em pacientes graves.

Nos meses seguintes, Bolsonaro demitiu dois ministros da saúde, Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril, e Nelson Teich, em 15 de maio. Ambos são médicos e se opunham à prescrição de cloroquina para tratar pacientes com quadros leves da doença.

Em 20 de maio, o Ministério da Saúde, já tendo como ministro interino o general Eduardo Pazuello, passou a orientar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no “tratamento medicamentoso precoce” de pacientes com o novo coronavírus, mas ressaltava que “ainda não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o benefício inequívoco dessas medicações para o tratamento da covid-19”.

Só naquele mês, o Comprova publicou quatro verificações sobre o uso da cloroquina – todas com a etiqueta de conteúdo enganoso.

Enquanto o chefe do governo federal defendia o medicamento sem eficácia comprovada, alguns médicos do Brasil todo passaram a fazer o mesmo. Começaram a surgir falsas teorias de que cidades, como Porto Feliz, teria evitado mortes pelo vírus por terem adotado o tratamento com o remédio.

Ainda em outubro de 2020, a OMS rejeitou de forma conclusiva o uso da cloroquina no combate ao coronavírus e, quatro meses depois, a Apsen, maior fabricante do medicamento no Brasil, afirmou que não recomendava que ele fosse usado para este fim. Outras três farmacêuticas –Farmanguinhos/FiocruzEMS e Sanofi-Medley já haviam feito declarações nesse sentido. A Cristália, outra das seis fabricantes, divulgou um texto em março deste ano em que um representante ressaltou: “Não vendo nenhum produto fora do que a Anvisa autorizou. Ela autoriza para algumas coisas, como malária, mas não tem nada a ver com Covid. Na minha bula, que é dada pela Anvisa, só forneço cloroquina para estes fins específicos”. O sexto produtor é o Laboratório do Exército, pertencente ao governo federal, que continua defendendo o medicamento.

Por que investigamos?

Em sua 4ª fase, o Comprova verifica conteúdos de redes sociais ligados à pandemia e a ações do governo federal. Priorizamos informações suspeitas que têm grande alcance, como o post analisado nesta checagem.

Embora não tenha eficácia comprovada, a cloroquina vem sendo amplamente defendida pelo presidente e seus apoiadores. Isso pode significar um risco para a população já que as medidas eficazes conhecidas até agora, além da vacina, são o distanciamento social, restrição de circulação, uso de máscaras e higienização das mãos. Só assim o país vai diminuir os índices de contaminação e morte pela doença.

No ano passado, quando o post com Kalil foi publicado, houve 183 mil compartilhamentos no Facebook. Desde 8 de maio de 2021, quando ele voltou a circular, já foram 6,6 mil compartilhamentos e 12 mil interações.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 28 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.