Correio de Carajás

“O Pedral do Lourenção somos nós”, clamam comunidades ribeirinhas sobre derrocagem

Cacique Kátia: “É um projeto atrás do outro, e um afetando mais do que o outro. Como fica a nossa saúde, como fica a nossa vivência com o território?” (Foto: Ulisses Pompeu)

A discussão em torno da derrocagem e dragagem do Pedral do Lourenção e da proposta de construção de uma hidrovia no Rio Tocantins tem mobilizado importantes vozes em Marabá e região. Esses representantes, provenientes de diferentes esferas da sociedade marabaense, compartilham preocupações ambientais, sociais e culturais relacionadas aos impactos iminentes desses projetos na região.

Seus discursos na audiência pública ocorrida na tarde desta terça-feira (21) evidenciam uma busca coletiva por diálogo, transparência e consideração das comunidades locais nos processos decisórios que moldarão o futuro do Rio Tocantins e de suas comunidades ribeirinhas.

Por isso, o MPF está realizando audiências públicas, para ouvir essencialmente essas vozes diversas, que vivem às margens dos rios, que são conhecidas como populações tradicionais.

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FAUNA

Cristiane Vieira, doutora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e coordenadora do Projeto Quelônios de Marabá, trouxe importantes preocupações ambientais e sociais durante o evento, em que destacou a falta de consideração dos impactos nos estudos ambientais da hidrovia proposta para o Rio Tocantins.

Em sua fala, ela ressaltou dois pontos cruciais. O primeiro destaca a ausência de consideração das espécies endêmicas de peixes no Rio Tocantins, especialmente aquelas que dependem das porções de pedras, como o Pedral de São João e o Pedral do Lourenção, que estão ameaçadas pelo projeto da hidrovia, colocando em risco a sobrevivência de espécies que dependem desses locais para reprodução.

Doutora Cristiane Vieira destaca a falta de consideração dos impactos nos estudos ambientais da hidrovia (Foto: Evangelista Rocha)

“Não houve consideração adequada nas análises de impacto ambiental para espécies endêmicas de peixes. Estamos falando da destruição dos únicos locais onde essas espécies sobrevivem e se reproduzem. Os estudos precisam incluir essa perspectiva para uma avaliação mais precisa”, destacou a pesquisadora.

O segundo ponto abordado por Cristiane diz respeito às tartarugas da Amazônia, uma espécie que já foi considerada quase extinta na região do Lago de Tucuruí. Estudos recentes indicam a presença dessas tartarugas em tabuleiros ao longo do canal proposto para a hidrovia. O projeto, no entanto, ameaça destruir esses tabuleiros, comprometendo o habitat dessas tartarugas.

“A linha da hidrovia está planejada para passar próximo a esses tabuleiros, e a dragagem proposta pode impactar diretamente essas áreas. Estamos falando de uma espécie vulnerável que pode perder seu habitat vital se o projeto for adiante”, alertou.

Além das questões ambientais, a pesquisadora também destacou a falta de consideração dos aspectos sociais do projeto, incluindo a ausência de recursos destinados à compensação ambiental. Ela chamou a atenção para a necessidade de envolver as comunidades locais no processo decisório e garantir que seus interesses sejam considerados.

“A compensação ambiental não pode ser deixada de lado. É preciso pensar em políticas públicas que garantam o bem-estar das comunidades afetadas. Os impactos sociais devem ser levados a sério”, enfatizou Cristiane.

COMUNIDADE RIBEIRINHA
Gilvan Gomes da Silva, representante da comunidade Vicinal São Sebastião João do Carrapato, no município de Marabá, trouxe à tona as apreensões e incertezas da comunidade ribeirinha em relação à derrocagem do Pedral do Lourenção e à construção da hidrovia no Rio Tocantins. Em uma manifestação direta ao governo local, Silva expressou a profunda preocupação da comunidade, destacando a falta de diálogo e informação sobre os impactos que essa obra pode ter em suas vidas.

“Nós somos de uma comunidade ribeirinha, e tenho absoluta certeza de que seremos atingidos com a derrocagem do Pedral do Lourenção e a construção da hidrovia no Rio Tocantins. Estamos aqui para expressar nossa discordância em relação a essa derrocagem, pois não houve nenhuma conversa prévia para nos informar sobre os impactos e qual será nossa posição diante desse cenário”, afirmou Gilvan.

A comunidade busca respostas sobre as medidas que serão tomadas para mitigar os impactos e quais serão as garantias oferecidas às famílias afetadas. “Queremos saber das empresas que buscam a licitação do governador e qual mediação será disponibilizada para nós. Estamos cientes de que seremos impactados, tanto diretamente quanto indiretamente, e isso nos aflige profundamente”, ressaltou ele.

A falta de diálogo e transparência por parte das autoridades locais tem levado a comunidade a buscar informações e esclarecimentos sobre seu futuro diante da iminente transformação na região. A manifestação dele reflete o anseio das comunidades locais por uma participação ativa no processo de decisão, garantindo que suas vozes sejam ouvidas e consideradas na implementação da hidrovia no Rio Tocantins.

DEFESA DO RIO TOCANTINS
Dan Baron, o galês idealizador do projeto Rios de Encontro, compartilhou sua longa trajetória na defesa do Rio Tocantins e do Pedral do Lourenção durante uma recente intervenção. Desde 2010, Baron tem liderado esforços para sensibilizar as comunidades ribeirinhas sobre a vulnerabilidade do rio e os impactos potenciais do derrocamento do Pedral do Lourenção.

Em sua fala, Baron destacou a consciência das comunidades ribeirinhas sobre a fragilidade do rio, especialmente diante das maiores enchentes do século na história recente e das mudanças climáticas sem precedentes. Ele ressaltou que, apesar das promessas de emprego e industrialização, as comunidades estão cientes dos desafios enfrentados pelo Rio Tocantins.

Em 2016, o projeto Rios de Encontro levou jovens para vivenciar a realidade ecológica da região, buscando conscientizar sobre os impactos ambientais e a falta de cumprimento de condicionantes por parte dos empreendimentos. Ele enfatizou a clareza das comunidades sobre a crise ambiental global e a urgência de encontrar soluções mais sustentáveis.

Dan Baron destacou a consciência das comunidades ribeirinhas sobre a fragilidade do Rio Tocantins (Foto: Ulisses Pompeu)

Desde 2017, o projeto Rios de Encontro tem promovido fóruns sobre alternativas ecológicas, como a disponibilização de placas solares para cada residência e negócio em todo o país. Baron ressaltou que existem opções mais inteligentes climaticamente e que a conscientização ribeirinha foi fundamental para a elaboração de um projeto de lei.

No dia 6 de junho, a bancada do PSOL protocolou um projeto de lei, elaborado pelo Coletivo EcoeBrasil, coordenado por Dan, que transforma o “ecocídio” em um crime real. O projeto foi aprovado pela Comissão do Meio Ambiente e continuará sendo discutido em nível federal. Baron destacou que essa iniciativa surgiu da consciência das comunidades ribeirinhas, especialmente após visitas ao Pedral do Lourenção, mostrando que a luta pela preservação ambiental pode influenciar mudanças significativas nas políticas públicas.

A história da figura e o projeto Rios de Encontro ilustram a importância da conscientização local na busca por soluções e políticas mais sustentáveis em meio aos desafios ambientais enfrentados pelas comunidades ribeirinhas.

TRADICIONALISMO
Anderson Silva dos Santos, presidente da Associação Ribeirinha Extrativista Vila Praia Alta Pequenos Agricultores Familiares, trouxe uma poderosa declaração à audiência pública, expressando suas preocupações sobre os impactos da hidrovia no Rio Tocantins e defendendo o tradicionalismo de sua comunidade.

Com 29 anos de vivência na Vila Praia Alto, Anderson destacou sua ligação profunda com o local e sua determinação em lutar pela preservação do modo de vida tradicional que caracteriza a comunidade ribeirinha. Ele ressaltou que diversas comunidades estão enfrentando ameaças em seus territórios devido ao desenvolvimento desenfreado e à falta de fiscalização na região.

“Estou aqui para lutar e defender o tradicionalismo, assim como outras comunidades que sofrem com ameaças em seus territórios, sendo largadas e vivenciando a maldade do desenvolvimento desenfreado e sem fiscalização da nossa região,” afirmou.

O presidente da associação direcionou sua fala à mesa, pedindo respostas para o povo que depende do rio para subsistência. Ele expressou gratidão à sua comunidade por representá-la na audiência e enfatizou que a ideia de que são a favor da derrocagem do Pedral do Lourenção, conforme indicado por alguns cartazes expostos na audiência, é uma mentira.

Ribeirinho Anderson chama atenção para o desenvolvimento desenfreado e à falta de fiscalização nos rios da região (Foto: Evangelista Rocha)

Anderson destacou a importância de serem ouvidos e reforçou o papel essencial que o Rio Tocantins desempenha na vida das comunidades ribeirinhas. “Às vezes me emociono ao pensar que a saúde do Rio Tocantins está ameaçada por projetos do governo e de grandes empresários. Nós queremos ser ouvidos. ‘O Lourenção sou eu, o Lourenção somos nós.’ Estamos aqui para defender nosso território, nossa casa,” declarou com firmeza.

A intervenção do jovem Anderson representa a voz das comunidades ribeirinhas que buscam preservar seu modo de vida e enfrentar os desafios impostos por projetos de grande escala. Sua mensagem destaca a necessidade urgente de diálogo e consideração das comunidades locais na tomada de decisões que afetam diretamente suas vidas e meios de subsistência.

MAB RESISTINDO
Cristiano Medino, educador popular e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), revisitou a preocupação do movimento em relação à hidrovia proposta para a região do Rio Tocantins. O MAB, conhecido por seu engajamento na defesa das comunidades afetadas por empreendimentos hidrelétricos e outros projetos, destaca que a hidrovia não apenas representa uma ameaça direta às comunidades ribeirinhas, mas também está intrinsecamente ligada a interesses econômicos, desconsiderando a sustentabilidade da região.

“A hidrovia não se resume à derrocagem de pedrais; ela envolve toda uma cadeia de interesses, principalmente na agropecuária e no cultivo de soja. Essa abordagem desconsidera a vida cotidiana de 25 mil certificadores que dependem diretamente do Rio Tocantins para sua subsistência”, explicou Cristiano.

O militante ressaltou que a viabilidade econômica da hidrovia parece negligenciar os aspectos fundamentais para a população local, como a pesca e o sustento diário proporcionado pelo rio. “O grito das pessoas afetadas, especialmente os ribeirinhos e pescadores, não está sendo levado em conta. O Rio Tocantins é mais do que um curso d’água; é um sustento, uma vida cotidiana para milhares de pessoas que vivem ao longo de suas margens.”

Cristiano frisa que a hidrovia parece atender mais aos interesses da agricultura patronal do que às necessidades reais das comunidades locais. “É essencial considerar que o rio é sustentável por si só, atendendo às demandas da região de maneira equilibrada. A hidrovia proposta parece visar uma demanda que não está alinhada com as necessidades da população local.”

O MAB promete intensificar seus esforços na conscientização e mobilização das comunidades afetadas, além de buscar diálogo com autoridades e órgãos competentes para garantir que as vozes das pessoas diretamente impactadas sejam ouvidas e respeitadas durante o processo de decisão sobre a hidrovia no Rio Tocantins.

FLORA
Érica de Souza, doutoranda do Núcleo de Autoestudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, juntamente com representantes de comunidades tradicionais, formalizou uma posição unificada contra a implantação da hidrovia na Amazônia. A iniciativa visa proteger não apenas a riqueza biodiversa da região, mas também preservar a ancestralidade e o modo de vida das comunidades milenarmente estabelecidas na área.

“Estamos tomando voz para que a hidrovia não aconteça, porque ela não traz desenvolvimento real para as comunidades”, destacou Érica. Ela enfatizou que a implementação da hidrovia não apenas impactaria negativamente o meio ambiente, mas também representaria uma ameaça direta à existência das comunidades que há gerações dependem da riqueza natural da região.
“Muitos habitantes desta região têm seus antepassados aqui há mais de dez mil anos. Não podemos permitir que empreendimentos desconsiderem a história e a sustentabilidade das comunidades locais, especialmente em tempos de desafios climáticos”, lembrou a pesquisadora.

A doutoranda da UFPA, Érica de Souza, ressalta a necessidade urgente de repensar o modelo diante das mudanças climáticas (Foto: Evangelista Rocha)

O evento desta terça marcou a posse simbólica da universidade e das comunidades tradicionais na defesa de seus territórios e modo de vida. A união destas vozes busca sensibilizar autoridades e a sociedade sobre os impactos prejudiciais que a hidrovia pode trazer para a região amazônica.

Diante do cenário de seca e das preocupações ambientais, a comunidade acadêmica e as comunidades locais estão unidas para promover um diálogo construtivo sobre o desenvolvimento sustentável na Amazônia, destacando a importância de preservar as tradições, a biodiversidade e o equilíbrio ambiental da região.

POVOS ORIGINÁRIOS
A cacique Kátia Silene Akrantikatejê, representante da Terra Indígena (TI) Mãe Maria, expressou preocupações e denunciou os impactos iminentes e já presentes do Projeto do Pedral do Lourenção em seu território durante a recente audiência pública.

Ela destacou que a hidrovia proposta afetará diretamente as comunidades, uma vez que os rios Jacundá e Flexeira, essenciais para a subsistência e cultura da comunidade, desembocam no Araguaia e no Espírito Santo, respectivamente. Ela enfatizou que a comunidade indígena já está sendo impactada, e o projeto tem potencial para agravar ainda mais a situação.

Kátia também expressou sua frustração com o fato de que as comunidades indígenas não foram consultadas ou ouvidas durante o planejamento do projeto. Ela ressaltou a dependência crucial dos rios para a comunidade, tanto para o sustento através da pesca quanto para a preservação da cultura e dos costumes.

Além dos impactos da hidrovia, a cacique mencionou as consequências da duplicação da BR-222 na região. Para a comunidade, esses projetos representam uma sequência de ameaças à saúde, ao território e ao modo de vida tradicional. Ela demonstrou preocupação com a saúde física e psicológica da comunidade, que já está enfrentando uma crise climática.

“É um projeto atrás do outro, e um afetando mais do que o outro. Como fica a nossa saúde, como fica a nossa vivência com o território? Já estamos passando por uma crise climática, e se a hidrovia passar, vai piorar cada vez mais. Nós vivemos do território e protegemos o território, por isso que estamos aqui”, declarou.Kátia compartilhou o sentimento de revolta presente na comunidade, destacando que a reivindicação e a dor do povo do Pedral do Lourenção são compartilhadas pelos indígenas da TI. A representante indígena deixou claro que a resistência está enraizada na defesa de seu território, de sua cultura e na busca por justiça e respeito às comunidades tradicionais. (Thays Araujo e Ana Mangas)