Talvez o único país seguro, mesmo com seus percalços e incertezas, suas areias movediças e logros, seja o país da infância; lá estão os pilares expostos com suas fissuras e ferrugens, também as represas longamente solidificadas por mil camadas de areias e fungos: um dia dali sairá, não tenho dúvidas, a última resistência… E, quando os abismos forem aos poucos se abrindo à volta, é de lá que tentaremos retirar a pouca (ou muita, sabe-se lá) proteção que nos amortecerá dos medos.
Quando menino havia um amiguinho oculto, não desses imaginados por crianças solitárias (digo logo para que não acreditem em metáforas), que nos seguia bobo e solitário por todos os lugares: não ia pra escola, talvez para sua família não fosse urgente obrigá-lo, também não seguia pro roçado ajudar nas tarefas que sobravam pros miúdos; apenas sabíamos que não aceitava de ninguém ordens nem obrigações, só fazia o que lhe desse na cabeça.
Simplesmente sumia por aí, embora soubéssemos que ele estivesse sempre por perto, de espreita, muito mais próximos de nós do que imaginávamos: na hora do recreio se esforçava para pegar as bolas que escapavam por cima do muro, logo jogando de volta; quando dávamos fé lá estava sua cabeça alourada (dizíamos “fogoió” na época) num canto do muro, como quisesse participar de nossas brincadeiras mas não tivesse coragem.
Leia mais:Aos domingos todas as famílias da vizinhança iam para a missa e feira na cidade, e alguns arranjavam quaisquer meios que os pudessem levar, uns iam de animais, que eram amarrados num enorme benjamim ao lado da praça da igreja, raros de bicicletas, um carro de carroceria e escadinha carregava principalmente os de idade avançada; já a leva de meninos corria pelas ruas, descobrindo toda sorte de novidade e brincadeiras que entretecem da poeira e pedras da estrada.
Sabíamos que o “de ovelha” nos seguia por dentro dos matos, vezes o víamos feito aparição fosforescente: ele nos pregava sustos de um lado e logo nos jogava pedras do outro, parecia se divertir com seu anonimato, embora estivesse muito mais presente em nossas vidas do que imaginávamos: era um de nós, um qualquer como todos e parecia mesmo nosso irmão; só que um irmão de todos da pequena cidade, porque bisbilhotava a todos com igual intensidade: se demorasse a aparecer era motivo logo, entre nós, de queixas.
Apenas os adultos o tinham como atrasado da cabeça, para a meninada era apenas um de nós, invisível mas muito presente: corríamos com ele, nós pelas veredas e caminhos e ele por dentro dos matos, ria de nós e nós dele: trocávamos pedradas e carinhos e quantas vezes não me ajudou em tarefas pesadas, em meu desespero saía pra chorar um pouco atrás de casa, quando voltava estava tudo bem feito e eu fingia não ver suas pegadas que sumiam na beira do mato.
Uma parte de nós foi estudar em outras cidades grandes e, nas poucas vezes que retornei durante as férias preferia os namoros, as festas, o futebol com os adultos: soube apenas que ele nunca deixou de ser criança, que mesmo já barbado e grandalhão continuou suas inocentes traquinagens – afirmam que recusou bebidas, cigarros e correu com medo de uma menina que lhe demonstrou simpatia.
Eu mesmo continuei a vê-lo em muitas páginas de Zé Lins, Graciliano, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, mesmo nuns livros estrangeiros: eram ele puro, “imperialzinho” como se dizia na roça: até que ultimamente tenho notado em mim, já velho e alquebrado, muitos traços do fogoió: sua estranha mania de andar nas sombras, sempre anônimo, de percorrer caminhos que margeiam as vias principais – os quartos sempre escuros, as ruas sombrias têm me atraído, e até já atiro pedras nos contentes que seguem aos risos esquecidos de mim.
* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.