Correio de Carajás

No Brasil não existe “índio”: a propósito do Dia 19 de abril

Quando fui convidada a compor o quadro de colunistas do Correio – Portal de Carajás, depois de participar de uma edição especial alusiva ao Dia da Mulher deste ano, em que mulheres indígenas foram homenageadas por este veículo de comunicação, pensei ser pertinente propor a continuidade de algumas das provocações que enunciei naquela matéria que ladeei com a cacique Kátia Silene Valdenilson, do povo Akrãtikatêjê da Terra Indígena Mãe Maria, mulher guerreira pela qual nutro grande respeito e admiração.

Como sou “palavrosa”, ofício aprendido com a minha avó paterna Maria Soares Fernandes, já falecida, que adorava contar longos causos sobre seres reais e imaginários e que nos encantava com sua oratória admirável, topei o desafio! Como educadora e antropóloga que sou, não poderia ser diferente, pois, o texto falado e escrito são minhas ferramentas cotidianas de trabalho e militância.

Pois bem, desde que me embrenhei nas leituras do mundo e das palavras, tenho me deparado com certas “verdades” ditas absolutas que escamoteiam outras “verdades” possíveis. E se o ponto de vista é sempre a vista de um ponto, proponho aos leitores e leitoras novos olhares sobre temas ditos “comuns”, mas, por outras lentes, para outras compreensões possíveis. Este é o desafio deste texto de abertura e da minha coluna “Pluralizando” que tem como objetivo trazer quinzenalmente reflexões sobre temas relacionados às Amazônias.

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O título enunciado é uma provocação às práticas já conhecidas no dia 19 de abril, em que se “comemora” o “Dia do índio”. Para começar nosso caminho de desconstrução, proponho que acione em suas memórias imagens que lhe ocorrem quando ouve o termo “índio”.

Não seria nenhuma surpresa se os/as leitores/as relatassem que as imagens dizem respeito às caricaturas generalistas aprendidas nas escolas ou nos meios de comunicação de massa que associam “índio” à preguiça, ao atraso, pessoas que vivem na mata, andam nuas, entre outras construídas sistematicamente e que são reforçadas nas ditas “comemorações” descontextualizadas das realidades que insistem em reproduzir estereótipos, imagens fixas que nada tem a ver com a diversidade e contemporaneidade dos povos indígenas no Brasil: são todos iguais, moram em ocas, adoram o Deus Tupã e a lua Jaci e blá, blá, blá… ou ainda, são povos do passado que deixaram algumas “heranças” e contribuições à cultura brasileira, como dormir em redes, entre outras.

Tais estereótipos reduzem a grande diversidade de povos indígenas no Brasil. Atualmente são mais de 300, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), com diferentes línguas originárias, falando também o português e outras línguas, morando nas aldeias e nas cidades, cursando universidade, atuando como médicos, advogados, professores…

Assim como a visão genérica e estereotipada sobre os povos indígenas, o termo “índio” também representa um grande equívoco histórico, inventado pelos colonizadores espanhóis por acreditarem estar aportando na Índias, por isso, “nominaram” erroneamente os integrantes das centenas de milhares de povos que encontram nas américas como “índios”.

O violento processo colonial que sucedeu posteriormente a invasão europeia nas chamadas Américas, orientado pelo racismo, classificou como “selvagens e preguiçosos” todos os povos que não pareciam com o ideal eurocentrado de pessoa e sociedade, por isso desumanizados, escravizados como povos “sem fé, sem lei e sem rei”, simplesmente por terem culturas e formas de organização diferentes dos europeus. Por isso as construções imagéticas dos povos indígenas no Brasil remetem quase sempre às ideias negativas pré-concebidas pelos colonizadores, por isso também, preconceituosas.

Desde a invasão portuguesa em 1500 até a Promulgação da Constituição Federal de 1988, quando os direitos indígenas são “finalmente reconhecidos”, a relação do Estado brasileiro com os indígenas produziu violências extremas, como mostra o Relatório Figueiredo (1967) que está disponível para acesso na internet e que narra agressões absurdas dos funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) criado em 1910, por isso substituído pela Fundação Nacional do índio em 1967.

Cabe ressaltar que foi com muita organização e reivindicação que a Carta Magna  de 1988 finalmente garantiu o direito à autodeterminação dos povos, que se autodenominam  Karajá, Parkatêjê, Kyikatêjê, Akrãtikatêjê, Kaingang, Guarani, Tembé… com sistemas culturais, políticos, educacionais, jurídicos, econômicos, linguísticos, cosmológicos e organizacionais próprios.

Tamanha diversidade étnica e linguística não pode ser reduzida ao termo “índios”, que além de pejorativo é marcado pelo racismo e o preconceito que ainda produz violência e exclusão. Não esqueçamos de Galdino Pataxó que teve seu corpo incendiado por jovens em Brasília em 1997 e faleceu em decorrência dessa brutalidade.

Diferentemente, o termo indígena, foi apropriado politicamente pelo Movimento Indígena na década de 70, pois unifica povos diferentes em torno de resistências, lutas e enfrentamentos comuns, conforme discute  Gersem dos Santos Luciano, antropólogo Baniwa, docente da Universidade de Brasília (UnB) no seu livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, publicado em 2006 e que está disponível para leitura no site do Domínio Público. A leitura é importante para quem quer saber mais sobre os povos indígenas no Brasil.

Como indígena, educadora e antropóloga,  recomendo fortemente que o 19 de abril seja uma data de reflexão sobre o processo histórico de resistência, luta  e protagonismo dos povos indígenas para continuar existindo no Brasil, a exemplo do Acampamento Terra Livre (ATL) que reúne povos de todo o país em Brasília, do Distrito Federal no mês de abril e que está em sua 18ª edição.

Em pleno século XXI, com a multiplicidade de informações atuais disponíveis nas redes, não é admissível que educadores e educadoras continuem trabalhando a temática de forma folclórica e alienada das realidades indígenas. Fazer cocares de cartolina e colocar as crianças para dançar músicas como a da Xuxa só contribui para a reprodução dos estereótipos e equívocos generalistas, são um desserviço à almejada construção da cidadania plural indígena em nosso país.

Vale lembrar que a Lei 11.645 de 2008 estabelece que as redes de ensino públicas e privadas devem trabalhar as histórias e culturas indígenas e afro-brasileiras nas escolas, mas isso não significa que deva ser apenas no dia 19 de abril ou no dia 20 de novembro, pois todo dia é dia de combater o racismo e de construir relações de respeito com os povos etnicamente diferenciados no Brasil.

Ao invés de caricaturar o 19 de abril, mostre a diversidade de povos e a dinâmica cultural que é característica de todas as sociedades humanas, que mudam, se apropriam de novos elementos e descartam outros. Fazer o exercício de olhar para a sua própria cultura e identificar as inúmeras mudanças que ocorreram ao longo dos anos é muito importante para perceber que ninguém deixou de ser paraense por usar um iphone ou ter um carro fabricado no Japão, ou ainda, não deixou de ser brasileiro depois de aprender uma segunda ou terceira língua, como o inglês ou espanhol.

Da mesma forma, uma pessoa indígena não deixa de ser Kaingang ou Guarani porque não reside mais na aldeia, fala português, tem carteira de motorista e é universitário. Insistir nessas práticas é desqualificar as pessoas por seu pertencimento étnico. É racismo! E, cabe lembrar que racismo é crime inafiançável com pena prevista de dois anos de reclusão.

Para finalizar, vamos celebrar a diversidade, as diferenças, as línguas, as culturas que constituem patrimônios materiais e imateriais da humanidade.

No dia 19 de abril celebremos a luta e a resistência dos povos indígenas para continuarem existindo!

 

 

* A autora é da etnia Kaingang, Pedagoga, Mestre em Direito e Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), atualmente cursa Pós-Doutoramento na Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA) do Programa de Pós Graduação em Direito (PPGD/UFPA), assessora da Associação Kyikatêjê Amtàti. Milita em Direitos Humanos e Indígenas. Trabalha para construir uma sociedade mais justa e respeitosa para todos os povos.