Correio de Carajás

Violência e criminalização dos povos indígenas: mas do que estamos falando mesmo?

Recentemente, estamos sendo confrontados nas mídias sociais com um assunto que foi tornado polêmico. Dizemos que foi tornado, por se tratar de uma notícia que está sendo veiculada de forma, no mínimo, capciosa, e que tem instigado muitas pessoas a expressarem seu racismo e preconceito contra os povos indígenas. Trata-se do ocorrido no último dia 25 de abril, em que um grupo de estudantes Awaeté (denominados pelos não indígenas de Parakanã), reunidos no Posto de Taxakoakwera, foram surpreendidos com a entrada de um grupo de torias (não indígenas) na Terra Indígena Parakanã, que estavam à procura de três pessoas que desapareceram no interior da referida TI, desde o domingo, 24 de abril, segundo relatos dos Awaeté.

É muito importante começar com o relato do ocorrido a partir dos próprios Awaeté porque, a partir do que foi veiculado nas mídias sociais é que se instaurou na sociedade local, regional e nacional um ambiente de revolta, ódio, racismo e ameaças não apenas aos Awaeté, como aos demais povos indígenas e a parceiras e parceiros de luta.

Segundo o que circulou e está circulando na imprensa televisiva e nas redes sociais, os três jovens desaparecidos eram, supostamente “caçadores” e foram encontrados mortos no interior da terra do povo Awaeté Parakanã.

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Jornais de veiculação estadual e nacional mostraram o momento em que a notícia das mortes foi dada aos familiares e isso foi motivo mais do que suficiente para se ver disparadas em todas as redes sociais postagens incitando os não indígenas a invadirem as terras indígenas e “exterminar todos os indígenas”; inclusive convocando os comerciantes locais a não mais venderem nada aos Awaeté; pedindo a expulsão dos Awaeté do município de Novo Repartimento e declarações de que os Awaeté não estariam “preparados para viver em sociedade”:

Esses seres (Awaete parakana) não estão aptos a sociedade, são desumano e inescrupulosos!!!! Sei que não temos justiça em nosso país para que Justiça seja Feita. Mas, Creio que Haverá justiça de Deus, nesse país ainda haverá um presidente da República que criará leis de EXTERMINIO a toda essa Raça e seus defensores (mensagem repassada por um dos familiares nas redes sociais).

A mensagem defende o extermínio de todos os indígenas e seus defensores, ou seja, o discurso de ódio é estendido também aos não indígenas que defendem os povos indígenas e seus direitos, o que é demasiadamente grave considerando as consequências trágicas dos discursos de ódio já vivenciados pela humanidade em diferentes momentos históricos, em especial os povos indígenas que enfrentam mais de 500 anos de políticas de extermínio físico e cultural.

A sociedade brasileira avançou significativamente no reconhecimento das diversidades culturais e da pluralidade étnica para a promoção do bem de todas as pessoas, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (BRASIL, 1988).

Nossa lei máxima, a Constituição Federal de 1988, institui em seu artigo 231 que as terras tradicionalmente ocupadas como o são as terras indígenas, são de posse permanente dos povos indígenas e eles, e somente eles, têm o direito ao “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos” nelas existentes, o que significa que os indígenas é quem têm direito de caçar, pescar, coletar e praticar agricultura em suas terras.

As terras indígenas, no entanto, são o que atualmente os povos indígenas conseguem garantir juridicamente de seus territórios tradicionais. O professor Gersem Luciano, Baniwa é indígena e doutor em Antropologia e marca bem em seus trabalhos publicados a diferença entre terra e território, mostrando, sobretudo, que para a maioria dos povos indígenas no Brasil, as terras juridicamente reconhecidas como indígenas não coincidem com os territórios tradicionais, pois estes eram de dimensões bem maiores do que as TIs. Se tomarmos como marco temporal o período da invasão portuguesa, o Brasil todo é território tradicional indígena.

As terras indígenas são, portanto, protegidas por lei federal e aos não indígenas é proibida a entrada sem permissão e toda e qualquer atividade relacionada à caça, pesca, coleta, extração de madeira, garimpagem, em terras e territórios indígenas.

Entendido isso, o que pensar sobre o dito e o não dito no caso em questão?

Em primeiro lugar, os três jovens aparecem nas notícias como caçadores, mas o fato de eles terem entrado num lugar que de direito não lhes pertence, armados, para ali buscar o que também de direito não lhes pertencia, é simplesmente silenciado. Do que estamos falando afinal? De caçadores ou de invasores?

Se os não indígenas fizessem um paralelo entre este caso e suas realidades de vida, seria o mesmo que pensar que alguém, que não é da sua família, entra em sua casa armado para pegar aquilo que não lhe pertence, mas sim aos donos da casa. Para os não indígenas nesta situação hipotética seria o mesmo que um ladrão entrar armado em sua casa, o que poderia resultar num confronto que poderia acabar com a morte de alguém.

Muito provavelmente, se isso acontecesse, o direito à legítima defesa seria acionado pelo dono da casa. É certo que isso seria lamentado pelos familiares do criminoso e por todas as pessoas que são contra todo e qualquer tipo de violência. Mas, dificilmente veríamos uma mobilização da sociedade civil para entrar em todas as casas dos cidadãos brasileiros e matar todos eles, pois os mesmos não seriam considerados assassinos.

Da mesma forma, o caso da criança Yanomami de 12 anos que foi violentada, estuprada e morta por garimpeiros na semana passada, não gerou tamanha comoção, nem se ouviu dos indígenas que, por isso, exterminariam todos os garimpeiros ou pessoas não indígenas como forma de vingança e retaliação. Pelo contrário, alguns comentários de pessoas não indígenas nas redes sociais, ao invés de condenar a violência contra uma criança culpam os próprios Yanomami pela sob acusações de permissão ou aceitação do garimpo ilegal em suas terras, o que não procede por se tratar de povo de recente contato que luta contra o garimpo ilegal em seu território. Lembremos do massacre de Hamixu ocorrido em 1993, onde 16 Yanomami, entre mulheres e crianças foram brutalmente assassinadas por garimpeiros.

Outro paralelo que pode nos auxiliar na reflexão acerca das ameaças racistas que marcam o caso dos supostos caçadores é a morte de dois trabalhadores de uma empresa terceirizada da Equatorial, empresa de energia do Pará, cujos corpos foram encontrados depois de 14 dias de desaparecimento. Os homens foram mortos enquanto averiguavam denúncias de roubo de energia, segundo informações que circulam nas redes sociais.

O caso não provocou comoção nem revolta da população, mesmo se tratando de tamanha violência, o que nos leva a inferir que as ameaças e discursos de ódio se dão, sobretudo, pelo fato dos corpos terem sido encontrados em Terra Indígena, o que suscita racismo, preconceito e acusações que tentam desumanizar os Awaeté e destituí-los da condição de cidadãos brasileiros.

Os exemplos se fazem necessários pelo fato de que é exatamente isso o que está acontecendo em relação aos Awaeté. O que também não está sendo dito nas redes sociais, mas que é revelado pelas mensagens, é que a criminalização deste povo indígena não acontece por acaso, mas é a expressão histórica do mais profundo racismo que vem sendo cultivado e reproduzido na sociedade brasileira desde 1500, quando os territórios indígenas foram invadidos pelos colonizadores europeus.

Não queremos, com isso, justificar as mortes ocorridas, muito pelo contrário, somos totalmente solidários à dor dos familiares e amigos, mas também não podemos aceitar que esse discurso de ódio e racismo se instaure e continue a se reproduzir em nossa sociedade. Os indígenas são cidadãos como todo e qualquer brasileiro, e, assim sendo, têm direitos e deveres que devem ser respeitados e cumpridos.

As terras e territórios indígenas são as suas casas, os seus lares; estão protegidos por lei e a lei deve ser observada por todos, indígenas e não indígenas. Quando fatos como esses ocorrem, e não são poucos em todo o Brasil, há que se ressaltar, aos indígenas é tirada a condição de humanos, lhes é atribuído um lugar junto com os animais irracionais. Mas o que dizer de inúmeros crimes praticados pelos não indígenas contra os indígenas: indígenas queimados nas cidades; crianças indígenas estupradas até a morte; assassinato de lideranças, violação de seus territórios para extração e comércio ilegal de madeira,  roubo de minérios, frutos, caças, entre tantos outros?

Para além do ódio e do racismo, precisamos continuar lutando por um Brasil que de fato e de direito seja uma sociedade diversa e plural, em que as diferenças étnicas, linguísticas e culturais não sejam a base para desigualdades e desrespeitos, em todos os seus aspectos.

Nós, povos indígenas e parceiros de luta, nos colocamos contrários à criminalização dos Awaeté e manifestamos nosso apoio a eles e a todos os indígenas que enfrentam constantemente situações como essas e tantas outras em suas terras.

Rosani Fernandes é Kaingang, Pedagoga, Mestre em Direito e Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), atualmente cursa Pós-Doutoramento na Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA) do Programa de Pós Graduação em Direito (PPGD/UFPA), assessora da Associação Kyikatêjê Amtàti. Milita em Direitos Humanos e Indígenas. Trabalha para a construção de uma sociedade mais justa e respeitosa para todos os seres e povos.

Instagram: @rosanikamury

O texto foi escrito em co-autoria com Luiza de Nazaré Mastop de Lima – Doutora em Antropologia; docente na Faculdade de Ciências Sociais do Araguaia-Tocantins (FACSAT)/Unifesspa; parceira de luta dos povos indígenas no Brasil.

E-mail: [email protected]

Referências e materiais para consulta:

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

LUCIANO, Gersem dos Santos. 2006. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil hoje. v.1, MEC/SECAD/LACED/Museu Nacional, Brasília. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/indio_brasileiro.pdf.

ARAÚJO. Ana Valéria et alii Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível em: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_volume14_povos_indigenas_e_a_lei_dos_brancos_o_direito_a_diferenca.pdf