Correio de Carajás

Negros invadem a piscina do bamburrado em Serra Pelada

Minha rua, a rua que tomei para minha infância, não tinha piscina. Já disse aqui o nome dela e vou repetir: Travessa Lauro Sodré, na Velha Marabá, onde nenhuma casa tinha aquele “cômodo” de quem podia.

Pra melhor esquadrinhar, no bairro mapeado na memória, A Velha Marabá – somando umas 40 ruas ao redor da minha – não existia casa com piscina. E para que piscina? A gente não sentia falta coisa nenhuma. Tínhamos os rios, dois rios pra chamar de nosso. E o mais próximo de nossa casa era o Itacaiunas, a menos de 300 metros.

A gente tomava banho na hora que queria, principalmente quando mamãe e outras vizinhas iam lavar roupas e botavam no quaradouro. Mas também era bom fugir da última aula no Plinio Pinheiro para tomar banho no rio grande (Tocantins). Com os barcos descarregando castanha nos barracões, cada amêndoa que caía na água era um troféu que a gente ganhava ao pular na água e depois quebrar a bicha no dente.

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Piscina, com azulejo e água brilhando era um compartimento inventado nos desejos. Significava quase como uma certidão de família “boa”. Um atestado da condição afortunada de um menino ou menina “bem-nascida”.

Era, talvez, a porta do quarto proibido do castelo de uma deusa de uma das histórias de Sherazade. E por que não ter direito a se banhar na piscina? Essa pergunta eu só fiz quando me mudei para a Folha 17, tangido com a família pela enchente de 1980. Lá, a gente passava no ônibus e enxergava a piscina do clube da Vale, a primeira que eu vi na vida.

Depois foram surgindo outras nas casas dos bamburrados de Serra Pelada. Havia dessas quizilas de quem tinha piscina e olhava entortado para uma récua de pivetes e pivetas que, por um tempo, se enxergavam menos na cidade.

Buraco azulejado dos sonhos. Motivo de um sentimento estranho com quem podia ter um “clube” no quintal. Cadeiras diferentes das de dentro de casa, guarda-sóis e uma bica para tirar o cloro dos cabelos. Roupão e saída de banho!

Casa com piscina, passar num concurso para um banco, se casar, comprar um carrão, ter filhos, ler jornais e revistas e ser o melhor amigo do padre. Foi assim que a vida foi pautada para os sem piscinas de minha geração.

Parece que queriam que a gente acreditasse que o povo que morava na Folha 32, gente “apiscinada”, era melhor que nós. Porque, além de tudo, tinha ainda o direito ao cloro. O excedente dos privilégios.

Engraçado é que o “meu” colégio, o Pequeno Príncipe, era uma escola em que os donos ganharam dinheiro em Serra Pelada e tinham piscina em casa. Construíram uma igreja ali do lado, mas eles não deixavam a gente tomar banho na piscina.

Até que um dia, meu colega de classe Jônatas, convidou parte da ralé para um rolê na piscina da casa dele, na Folha 31. O pai era um dos bamburrados (depois ficou pobre lascado) e nós tomávamos banho porque também tínhamos o direito de experimentar a piscina dos que tinham piscina.

Eu queria dar saltos como fazia na beira do rio, com prazer, e não era incômodo sair da água com os olhos avermelhados e pele engelhada nos dedos.

Um dia, os militares da ditadura (que quase não se acaba) convidaram nós, os pobres, para a piscina da Vila Castelo Branco. Mas não tomaríamos banho na piscina daquela gente. Logo nós, que aprendemos nadar no estilo cachorrinho, quebrando bubuia dos colegas na Praça São Félix…

Uma vez por semana Jônatas nos convidava e queríamos brincar era dentro d’água, naquele retângulo comprido que se diferenciava do rio, porque só lá a água era azul.

Eu não imaginava que anos depois eu seria professor de natação, que passaria o dia inteiro dentro de uma ensinando menino a nadar. Não sabia que também teria uma piscina em casa (pequena). E que moraria em um local que poderia nadar a hora que quisesse numa outra de 25 metros.

Nem sei por qual motivo estou escrevendo este texto. Talvez mexido com a visão que tive passando de carro e vendo um garotinho olhando para outros tomarem banho em uma piscina numa casa do Novo Horizonte. Ele segurava a mão do pai, olhava para trás como que desejando voltar e entrar.

Os “vulneráveis”, carimbo que deram aos sem-piscina e ainda hoje dão, também têm direito de escolher se querem ou não uma bica para remover o cloro dos cabelos depois de se banharem na água azulejada.

 

* O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira