Correio de Carajás

Mais um pedaço de vida para Antônio Oliveira

O tempo que a vida nos oferece é ouro. Vale muito. Tenho um amigo, refém de um câncer aos 55 anos, que vive a estranha sensação de saber que vai embora daqui a pouco. Contou-me, sem se fazer de vítima, que o tempo e os afetos passaram a ter um valor desmedido. Queria, se fosse possível e alguém concedesse, a gentileza de viver ainda o 2022 todinho. Só até a virada do ano. Quer saber quem será o novo presidente da República, se seu candidato a deputado estadual vai ser eleito mesmo e se…se…

Todos os dias, ele acredita que viverá mais um e passou a achar extraordinário cada minuto que consegue atravessar consciente. Ouvir de manhã a voz da esposa, que traz o primeiro medicamento e o café, reencheu-se de significados. Eu acho que Antônio Oliveira merece, sim, mais um pedaço de vida.

Dos tempos dos campos de futebol, a gente ainda lembra alguma coisa. Recordou, por exemplo, o apelido que eu tinha entre a garotada do campo da Folha 11, quando me chamavam de “Big Hits” e como a gente era protagonista no Pequeno Príncipe.

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De uns meses para cá, Antônio Oliveira passou a contar as horas, também, pelos encontros com amigos que consegue ir costurando entre sessões de exames, procedimentos médicos e obrigações, agora, como paciente do destino.

Suas palavras – repito – sem querer se fazer de vítima, ecoaram forte em meu ouvido e coração: vou sentir falta, primeiro, de minha amada. Nunca a achei tão bonita! E como tenho ciúmes em saber que estará livre para outro rapaz! Mas torço para que se refaça e meus retratos não atrapalhem. E não ficarei sentido se entregar todas as fotografias a minha filha, única e única.

Vou sentir falta das coisas mais bestas. Já me habita a saudade das manhãs dos sábados, tenho a sensação ser o melhor dia da semana. Das idas à Velha Marabá para comprar o que precisava e o que não necessitava na Antônio Maia e depois dar um rolê aleatório pela orla. E de meu carro – minhas pernas, meus pés e minhas asas.

De minha neta, peço que me guarde nas lembranças como um amigo diferente que andava com pernas de rodas de bicicletas.

Fico pensando, às vezes, quando chegar a hora. Não ouvir mais os barulhos da casa, não ir deixar mais a esposa no trabalho, não sentir mais o cheiro do coentro na gaiola dos periquitos, da respiração da panela de pressão…

Queria um obséquio de quem escreve as histórias dos que rebentaram gente: me poupasse de qualquer dor. Na unha que fosse, uma picada de mucuim. Dormir e não acordar. Feito alguém que foi sonhar outra invenção, num lugar que nem imagino, mas que me seja leve.

Mais uma coisinha. Sopre de mim o medo da hora de ir e que alguém, que seja amigo ou parente, permita abreviar a dor, se ela for intensa demais. E se não for possível tirar essa dor, que pegue na minha mão só pra dizer que está tudo bem.

Sei que vão chorar, é da saudade. Mas só derramar o tanto que for. Nada além dos exageros, dos remédios para sair do ar, das rezas intermináveis, da amigação com quem adora mergulhar no sofrimento e só é comadre na dor.

Vou indo, terei atravessado. Se permitirem, asa partida somente após 2023.

Acabei na fila antes de minha mãe, que sei, sofrerá bastante ainda. Conforto pra ela, que consiga o desapego.

Isso foi o que Antônio me contou. Ele quer atravessar o Outubro Rosa, o Novembro Azul e escorregar pelo Dezembro Vermelho.

Tem coisas que a gente não consegue oferecer para os amigos. Se pudesse, eu lhe daria não apenas mais um pedaço de vida, mas uma eternidade. E se todas as pessoas tivessem a oportunidade de, como ele, aproveitar cada dia que tem para amar as pessoas, já teríamos um mundo bem melhor.

 

 

* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.