Correio de Carajás

Estudos fraudados não deslegitimam artigos que comprovam ineficácia da cloroquina contra a covid-19

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Médico norte-americano apresenta evidências enganosas ao sugerir conspiração da ciência contra cloroquina. Texto publicado em um site brasileiro, no qual o médico defende uso de coquetel de medicamentos contra a covid-19, engana ao não explicar que tratamento não tem eficácia comprovada.
  • Conteúdo verificado: Site publica texto com afirmações de cardiologista dos Estados Unidos ao Senado. Ele cita dois estudos sobre hidroxicloroquina que foram  fraudados e diz, a partir disso, que a droga funciona contra a covid-19 se combinada com outras – declaração sem embasamento científico, já que não há medicamentos com eficácia comprovada contra a doença até o momento.

O texto “‘Covid-19: estudos do tratamento precoce foram fraudados na medicina acadêmica’, diz Dr. Peter McCullough”, publicado pelo site Terça Livre, traz informações verdadeiras sobre as declarações do médico, mas engana ao não esclarecer que o “tratamento precoce” não tem eficácia comprovada contra o coronavírus.

O texto se refere às afirmações de McCullough durante uma audiência no Senado americano sobre “Tratamento ambulatorial precoce: uma parte essencial de uma solução para a covid-19”, em 19 de novembro de 2020. Ele esteve lá como testemunha, chamado pelo senador Ron Johnson, republicano que, como o ex-presidente Donald Trump, defende a hidroxicloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada contra o Sars-CoV-2.

McCullough é um conhecido defensor do chamado “tratamento precoce” nos Estados Unidos e, como destaca o Terça Livre, afirmou ao Senado que “o tratamento com hidroxicloroquina para a covid-19 foi ignorado, banido e até mesmo fraudado na medicina acadêmica”. Na audiência, ele citou dois estudos que refutavam os benefícios da hidroxicloroquina no combate ao coronavírus e que tiveram de ser retratados.

O Terça Livre confunde ao não informar que os estudos retirados do ar não invalidam outros vários artigos que comprovam a ineficácia dessas drogas na pandemia e que nenhum medicamento citado pelo médico é eficaz no combate ao coronavírus, não sendo, portanto, recomendados por autoridades sanitárias como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) e a FDA (agência regulatória de medicamentos, na sigla em inglês) dos Estados Unidos.

Procurado, o site não respondeu ao pedido de entrevista até a publicação deste texto.

Como verificamos?

O Comprova acessou o vídeo transmitido ao vivo pela conta do programa News Hour, da PBS, no Youtube, no dia 19 de novembro de 2020.

Em seguida, buscou a página da Comissão de Segurança Interna e Assuntos Governamentais do Senado Americano, onde localizou a audiência sobre “tratamento ambulatorial precoce: uma parte essencial de uma solução para covid-19”. O vídeo também está arquivado no site, além do testemunho do médico, transcrito na íntegra.

A reportagem também buscou a biografia do médico e consultou as entrevistas à Gazeta do Povo e à jornalista Laura Ingraham, da Fox News, nas quais defende que a  hidroxicloroquina, em combinação com outros medicamentos, é segura, eficaz e reduz a hospitalização e a morte.

Pesquisou quem é Ron Johnson, senador republicano que comandou a audiência da qual McCullough participou, e buscou informações sobre os estudos mencionados pelo médico, cujas fraudes foram repercutidas pela imprensa.

Foram consultadas as informações mais atualizadas em relação ao chamado “tratamento precoce” e que comprovam a ineficácia de medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina contra a covid. Por fim, a equipe entrou em contato com os responsáveis pelo Terça Livre, mas não obteve resposta.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 21 de junho de 2021.

Verificação

Os estudos

Os estudos mencionados por Peter McCullough tiveram, de fato, falhas apontadas. Um é o artigo “Cardiovascular Disease, Drug Therapy, and Mortality in Covid-19”, que continua disponível na plataforma do New England Journal of Medicine, mas com aviso de remoção. Outro, dos mesmos autores, foi publicado pelo Lancet e é alvo frequente de publicações que tiram as informações de contexto, como observou o Estadão Verifica em janeiro de 2021.

Os rumores no meio médico e estatístico sobre eles começaram após a divulgação na Lancet, em 22 de maio de 2020. O artigo defendia que o uso de medicamentos contra a malária, como a cloroquina e a hidroxicloroquina, no tratamento da covid-19 não se mostraram benéficos e aumentaram o risco de morte por problemas cardiovasculares.

Os pesquisadores informavam terem usado dados de 96 mil pacientes em 671 hospitais do mundo fornecidos pela Surgisphere Corporation, fundada pelo cirurgião vascular Sapan Desai, coautor do artigo.

Entretanto, causou estranheza que uma empresa pequena tivesse dados anônimos de tantos pacientes e dos mais variados hospitais. Os demais coautores, Mandeep Mehra, do Hospital Brigham de Mulheres de Boston, Frank Ruschitzka, do Hospital Universitário de Zurique, e Amit Patel, do departamento de bioengenharia da Universidade de Utah, pediram os dados brutos para assegurar tanto a veracidade da origem quanto a comprovação dos resultados, o que foi negado por Desai.

Como os dados originais de onde foram extraídas as análises não estavam disponíveis e sem um comitê de ética que comprovasse a legalidade do processo, cerca de 120 especialistas da área médica e estatística assinaram uma carta à Lancet apontando as irregularidades no estudo e exigindo a revisão. A revista inglesa retratou-se e retirou do ar o artigo em 5 de junho de 2020.

No dia da retratação, o The New England Journal of Medicine também publicou uma nota para retirar outro artigo assinado por Desai e que analisava se a terapia medicamentosa usada para tratar doenças cardiovasculares era eficaz no combate à covid-19. Os dados utilizados eram os mesmos do artigo da Lancet.

“Tratamento precoce”

Como reiterado frequentemente pelo Comprova, não há, até o momento, estudos que comprovem a eficácia ou segurança do uso de medicamentos associados ao “tratamento precoce” para o combate à covid. No caso da cloroquina e da hidroxicloroquina, a ineficácia nestes casos inclusive já está comprovada.

A OMS contraindica “fortemente” a adoção das duas drogas, posicionamento também adotado pela FDA, autoridade sanitária dos Estados Unidos, e pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Os órgãos se baseiam em outros estudos grandes, bem desenhados e publicados em revistas científicas respeitadas.

O médico

Peter McCullough é um especialista em doenças cardiovasculares ligado ao Baylor University Medical Center em Dallas, no Texas.

Ele defende a proposta de reunir diversas pesquisas já publicadas sobre “tratamento precoce” para formar uma espécie de guia orientativo para médicos. Afirma ser necessário usar um coquetel de medicamentos nesse tratamento, sendo que a hidroxicloroquina faria parte de um programa de quatro a seis drogas para pacientes com mais de 50 anos ou com comorbidades.

McCullough atribui a não adoção do tratamento ao medo dos médicos de contraírem o vírus e ao fracasso de governos, empresas farmacêuticas e agências de pesquisa na realização de grandes ensaios clínicos. Ele também vê como censura o fato de redes sociais, como o Twitter, suspenderem contas que tratem do assunto. Já foi alvo de agências de checagem como AFP ao distribuir informação inverídica sobre vacinação e teve artigo verificado pelo próprio Comprova.

O vídeo da audiência aqui checado tem de 2 horas e 16 minutos e foi transmitido ao vivo pela página do programa News Hour, da PBS, no Youtube, no dia 19 de novembro de 2020. Durante o depoimento, o médico afirma ter havido má-fé acadêmica em relação à hidroxicloroquina por conta dos dois estudos removidos das revistas científicas. O trecho consta a partir de 1:44:43 do vídeo.

Ron Johnson

Partidário fervoroso do ex-presidente Donald Trump, Ron Johnson, senador republicano de Wisconsin que comandou a audiência da qual McCullough participou, “passou grande parte de 2020 promovendo investigações contra Hunter Biden, tentando inutilmente mostrar a corrupção por parte de Joseph R. Biden Jr. (Joe Biden)”, segundo o The New York Times. Ainda de acordo com o veículo americano, ele “espalhou desinformação sobre o vírus, a eleição, o motim do Capitólio e até mesmo a vegetação da Groenlândia”.

Em janeiro de 2021, após a vitória de Joe Biden contra Trump, Johnson foi um dos 11 senadores republicanos que disse que iria contestar o resultado da eleição. Além de defender medicamentos como cloroquina e ivermectina, o parlamentar tem minimizado a urgência de vacinar todos os americanos, como mostra reportagem da CNN publicada em abril.

Terça Livre

O site pertence ao bolsonarista Allan dos Santos, investigado no inquérito que apura a organização e o financiamento de atos antidemocráticos ao longo de 2020.

As provas coletadas pela Polícia Federal no ano passado com a quebra de sigilo do aparelho celular de Allan dos Santos mostram que ele mantinha reuniões com deputados bolsonaristas e servidores do Palácio do Planalto. É dele uma mensagem enviada a um assessor de Bolsonaro na qual defende uma intervenção militar no país. Em julho de 2020, ele afirmou que havia deixado o país.

A Polícia Federal pede a abertura de oito frentes de apuração. Cinco meses depois de ser questionada pelo STF sobre a continuação das investigações, a Procuradoria-Geral da República defendeu o arquivamento do inquérito. Em 3 de fevereiro deste ano, Terça Livre teve seu canal no YouTube encerrado por violar as regras da plataforma, mas, em 12 de fevereiro, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ordenou que o Youtube reativasse o canal. À época, Santos chamou a retirada de censura e criou um canal próprio, que também foi removido.

Na semana passada, o Comprova verificou um tuíte em que o bolsonarista afirmava, falsamente, que um jogador dinamarquês havia se vacinado antes de sofrer mal súbito.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham viralizado nas redes sociais sobre a pandemia ou sobre políticas públicas do governo federal.

Quando o conteúdo envolve medicamentos ou tratamentos contra o novo coronavírus, a checagem é necessária porque informações incorretas podem levar as pessoas a colocarem a saúde em risco.

A publicação teve mais de 3,8 mil interações no Facebook e, destas, mil foram compartilhamentos. A postagem foi sinalizada pela plataforma com a frase “Tratamentos para a covid-19 sem comprovação científica podem ser prejudiciais à saúde”.

Neste ano, o Comprova já publicou diversas verificações neste sentido, como, por exemplo, os malefícios de altas doses de ivermectina, a não eficácia da hidroxicoloroquina contra a covid e sobre o “tratamento precoce”. Conteúdos semelhantes também foram publicados por outras agências de checagem, como Agência Lupa e Aos Fatos.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 33 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.