Correio de Carajás

Da infância à fase adulta: o medo que nos acompanha

Acredito que bem antes de nascer já convivemos com o medo, em nossa primeira morada quentinha e confortável já vislumbramos o que nos espera aqui fora, nem sempre afagos e canções de ninar, pois nossos primeiros sustos devem nos alertar dos muitos sinais de perigo.

Ao sair, a claridade nos olhos que, dizem, ainda não enxergam se juntam com a amplificação do barulho, o contato, antes macio e moldável nos pega sem jeito e nos jogam no ar: dali então nos acompanhará até a morte uma sequência de sobressaltos… Alguns até se acostumarão e sentirão prazer em provocá-los.

Qual criança não se encanta com o susto? Logo, logo aprenderemos a desafiar o mundo só para sentir nas entranhas o gratificante prazer do medo, a prazerosa endorfina do pânico.

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Ainda bem pequenos desafiamos os maiores, mesmo ciente de que o castigo inevitavelmente virá: nas primeiras séries nos juntávamos, os fracotes da classe, para insultar um grandalhão que se chamava José Wagner, a sineta tocava anunciando o final das aulas, nós, já numa estudada posição dianteira, gritávamos em coro: “Zeca Tatu, Zeca Tatu!!!” Corríamos aproveitando a situação de surpresa do “monstro”, quando ele conseguia nos localizar já tínhamos passado o portão de saída da escola. No início fugíamos juntos, mas com o passar do tempo e alguns tapas aprendemos a nos dividir, apenas um levaria os cascudos, leques e bicudos nas canelas.

Mesmo em casa, aproveitando a hora mais sagrada da cesta de meia hora de descanso de nossa mãe, arrumávamos sempre, os muitos irmãos e primos, alguma encrenca, mesmo sabendo qual seria o final da história: não importava a ela se a briga tinha sido de apenas dois ou três de nós, apanhávamos todos os que estivessem por perto, como se quisesse nos prevenir de futuras transgressões.

A luz do gerador na Marabá de antigamente se apagava às dez da noite, que uns quinze minutos antes se anunciava num pequeno apagão, como se dissesse: os que tiverem medo se abriguem, pois o escuro reinará dali a pouco; então nossa mãe acendia uma lamparina na sala, para que o ventinho de fora não apagasse.

Na frente de casa meu tio Manoel Fernandes – ou outro que estivesse por perto – nos atraia para as tenebrosas histórias de assombração – e raras eram as novas narrativas, novamente ouvíamos tremendo da Mulher de Branco que passava nas ruas da cidade a partir de meia noite e, inexplicavelmente, disparava em pavor estrada afora.

A Lenda da Boiuna não podia faltar e a sempre a gente queria mais e mais; havia também a do senhor que, voltando tarde da cidade de bicicleta não conseguia atravessar o leito seco de uma grota, algo invisível o puxava pela garupa, quando ele só conseguia prosseguir se descesse rezando e calmamente empurrasse a bicicleta. Invariavelmente terminava com o relato de quando dormia em sua bodega no mercado e acordava de noite com o barulho de um açougueiro fantasma que triturava ossos muito tempo antes de alguém abrir o grande portão de entrada.

Já maiores, nos reuníamos para assistir na televisão os macabros filmes de terror, onde só quebrávamos o silencio do medo com algum soluço ou grito abafados, com receio de parecermos covardes para os outros: não raro quando se acendia a luz da sala avistávamos algum sofá ou chão urinados: prometíamos não mais repetir a tenebrosa aventura, porém voltávamos sempre como se fôssemos atraídos pelo misterioso prazer do pânico que secretamente, hoje sabemos, nos habita desde pequenos.

Hoje já não nos trazem temor aqueles inocentes sustos que procurávamos incessantemente durante nossas vidas, apenas escondemos com a máscara da coragem o maior de nossos medos, e que – sabiamente – preferimos não provocar, então estufamos o peito, erguemos o queixo e, por dentro de nós, urinamos em nossa própria alma.

O medo agora é do ladrão de verdade que espreita quando estacionamos em qualquer rua; do matador que aparece do nada e tira a vida das pessoas em plena luz do dia, quase sempre numa motocicleta; do acidente diário que ocorre na nossa frente, num trânsito tresloucado de uma cidade que outrora era pacata.

 

* O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica às quintas-feiras

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.