Correio de Carajás

Crônica Ouriço Cheio: Um braço quebrado e o boletim de “reprovado”

“Era o último final de semana das férias de julho de 79, perdi a chance de ir à Praia do Tucunaré com uma patota do grupo de jovens da igreja e de ainda ciscar ao redor de uma franguinha que tinha combinado jogo”.

Já se passaram 40 anos e não tenho como deslembrar do acidente que sofri na rua de casa numa noite de sábado. No dia em que um avião caiu do lado de lá do Itacaiunas, perto das chácaras do Amapá, quebrei o braço esquerdo. Reinações de um menino de 10 anos e seis meses. Disputava um racha no asfalto da rua, descalço, em frente lá de casa, na Travessa Lauro Sodré. E quando driblei meu primo, ele deu um jeito de colocar a perna virada para eu não passar (só a bola).

Voei alto. Repetidamente bati com os pés contra a parede caraquenta da calçada, e quando achei que tinha asas larguei as mãos. Minhas pernas subiram e dava impressão que o corpo mirrado ia fazer um rodopio de 360 graus. E eu cairia em pé, feito um gato, para o despeito e inveja da pivetada.

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Fiz 180 graus, 190 e alguma coisa, mais uma coisinha… E parei. Talvez como boeing sem asas, por segundos, no ar. Daí, começou o desespero. Da queda livre, só me lembro da aterrissagem. Primeiro os braços sustentaram o peso do resto do corpo e a sensação que havia rachado tudo que era osso.

Muita dor e acudido pelos primos e moleques da rua. Só implorava pra não avisar mamãe. Tinha medo da surra pela danação. Era lei lá em casa. E na doidice, que só temos quando se é menino e há um anjo da guarda por perto, passei uma noite gemendo escondido no quarto. Gelo, água gelada de garrafa e raspa do congelador.

No outro dia não tinha como esconder. Braço inchado, mamãe enlouqueceu quando viu a arrumação. Deu uns gritos, prometeu cipó no futuro, e fomos a pé para o Hospital da Rua 5 de Abril, lá onde eu tinha nascido. Acho que ela não parou de falar da saída até a hora de a gente ser atendido pela recepcionista.

Era o último final de semana das férias de julho de 79, perdi a chance de ir à Praia do Tucunaré com uma patota do grupo de jovens da igreja e de ainda ciscar ao redor de uma franguinha que tinha combinado jogo. Dancei, ela ficou com uma menina (era moderna) e mandou dizer que sentia peninha pelo desastre do futebol noturno. Depois, passou lá em casa, assinou no meu gesso e fez coraçõezinhos flechados. Fingida (rsss). Mas até que gostei do derretimento dela.

Porque o médico mandou, tive de ficar três dias com o braço levantado. Passava boa parte do tempo em frente a uma Sharp 14 polegadas no sofá da vizinha ao lado. Não, não, de manhã até a noite. Que férias!

No dia seguinte eu soube do avião que caiu próximo ao Rio Itacaiunas e o piloto ficou só o torrão. Foi naquele tempo que eu passei a gostar de telejornal. As notícias me encantavam e eu não imaginava que um dia trabalharia produzindo a mesma coisa.

Sonhei por muito tempo com as estranhezas. Quando fechava os olhos pra dormir, via minha queda até quebrar o braço, pousando no campinho de calçamento. Depois, alguém descia e me recolhia. Dali, me levava no avião para Belém no avião que caiu perto do Itacaiunas. Havia muita história e imaginação de sofrimento. Alguns diziam que o piloto estaria com problemas conjugais.

Passei três meses com o gesso e sem conseguir ir às aulas. A professora Madalena foi implacável comigo naquele ano. RE-PRO-VA-DO! Eu não tinha feito as provas do terceiro bimestre e não tive chances nem mesmo na recuperação final.

De lá para cá, já fraturei pé, joelho e, há cerca de um mês, a clavícula. E toda vez que um osso se danifica, lembro do acidente do avião e da reprovação na terceira série.

(Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira