Correio de Carajás

Crônica Ouriço Cheio: Estranha arte de guardar o que nunca vou usar

“Gosto de mudança. Só não me apetece o encontro que tenho de fazer com o que fui acomodando e tenho quase nenhuma coragem para me desfazer. Emperro-me convencido de que ainda vou carecer, que há algo ali”.

Outra mudança de casa  – a oitava em enchentes – me colocou diante de um dilema: somos um bando de doentes, apegados a uma montanha de besteiras. A maior parte do que se traz pra dentro de casa nunca se usa. Ou só se experimenta uma vez e parecem que congela dentro de casa. Há mais sobras do que sei lá o quê.

E ficam ali, anos adentro, uma vida quase toda. Encafiotados no maleiro do guarda-roupa, debaixo da cama, no cabide, nas profundezas dos cômodos de nós, nas prateleiras ou até mesmo naquele quarto lá do fundo, que virou um armazém de bregueço… Datas vencidas.

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E como é lastimoso desfazer estantes, visitar gavetas, reencontrar fotografia e gente que foram passando! Coisas, caixas, relógios, cartas, livros, troços, escritos, miçangas, choros, roupas, risos e memórias vazando pelos combogós.

Socados. Mascarados de arrumados ou acomodados feito cada um. Quantos livros nos compraram e nunca lidos? Quais sapatos jamais fomos pelas coxias? Quanta louça sem comer e beber? Nenhuma visita!

Quantas camisas sociais, quantos vestidos, quantos cintos que não nos abarcam mais… Berimbelos aos monturos, sucatas de fusquinhas miúdos, corujas de coleção, quadros que não nos dizem mais nada. E o que dizer da televisão que não funciona mais e ficou presa no tempo e no espaço?

O pior, resistimos em descartar. Para não ferir os sentimentos das coisas acumuladas, pois digo, guerreamos para não distribuí-las. Conte as dezenas de calças compridas que nunca vestiram os outros nem nós?

Fico olhando para as centenas de livros, um mar de textos e pensamentos ruminantes. Preciso, mesmo, ter um Baudelaire e suas Flores do Mal em inglês? Um punhado de Oscar Wilde que não me diz muito porque está em alemão?

Talvez tenha feito sentido num tempo… Mesmo assim, resisto em deixá-los ir, fazê-los frequentar os que praguejam em outra língua. Fico a me justificar que poderei voltar para o francês, reencontrar Rebeca (minha professora dos tempos da faculdade) e retomar Baudelaire. Mas é desculpa…

E os DVDs e CDs, silentes há vinte e tantos anos… Nas gavetas ou no móvel de olhar e saber que estão por ali, no meu território, nos meus apegos. Sim, vez ou outra, estimulado por coisa qualquer, cato um e o escuto dias a fio. Até enjoar e o abandoná-lo, agora, entulhando os cômodos do carro.

O automóvel coitado, extensão também da casa cheia. Em cada canto, um documento que julgo importante. Mas que nunca mais precisei… Envelopes e envelopes de velhas contas pagas, moedinhas, páginas de jornais e revistas com assunto importante (nada é desimportante), borrões caducos…

Gosto de mudança. Só não me apetece o encontro que tenho de fazer com o que fui acomodando e tenho quase nenhuma coragem para me desfazer. Emperro-me convencido de que ainda vou carecer, que há algo ali.

Deixo a missão de jogar fora o que não vai me interessar à Ana Raquel, que é antônimo de mim. Gosta de fazer uma devassa na velharia e renovar o estoque.

Confesso o apego. Em compensação, no se desfazer há uma sensação desmedida de alvará de soltura…

É porque somos esquisitos, atravessados. Já estou planejando outra mudança daqui a dois anos. Quero morar de frente para o Rio Tocantins, sentir a brisa que vem das águas soprar no rosto a cada amanhecer. Já faço planos do que levar, do que doar, do que deixar no monturo ou tocar fogo.

(Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira