Conheci até aqui, nos meus 50 anos de ir indo, dois highlanders de carne e osso. Já acreditava na lenda do homem, encantado ou amaldiçoado, que só se encontra com a morte quando lhe rolam o pescoço. Crer em fantasiações não é ruim, suspende o juízo das aporrinhações do dia nem sempre com cheiro de folha de açaí.
Ser highlander só tem um defeito: chega a hora que carecemos morrer por aqui. Ir e ser transformado em um desenho que não sei traçar. Querendo ou não, morremos de um dia para o outro e rebentamos de manhã. Não é filosofia de botequim. O highlander, chega um tempo, é atormentado porque está condenado a viver sem fim e não sabe a hora de se bastar.
Pois bem. Dos dois que gostavam de viver e foram surpreendidos que teriam de partir antes do “normal”, um deles é Mestre Gaspar. Faleceu nesta quarta-feira, 3 de junho, e entrou para o longo obituário da Velha Marabá em 2020.
Leia mais:Nasci na travessa Lauro Sodré, perto da casa dele e cresci levando e trazendo calçados de todo mundo lá em casa para ele consertar. Calmo, sempre teve alguém para lhe auxiliar na oficina encantada da Travessa Alto do Bode, conhecida hoje só como Benjamin Constant.
Depois da enchente avassaladora de 1980, mudamos para a Folha 17 e mamãe não quis mais voltar a morar na Velha. Mesmo assim, apesar de haver sapateiros espalhados nos quatro cantos da Nova Marabá, éramos obrigados, vez ou outra, pegar o ônibus e levar os calçados que estavam “com fome” para o mágico Gaspar consertar. Ele era mais velho que meu pai, mas parecia muito mais novo.
Os calçados – botas, chuteiras, sandálias das mulheres – voltavam sempre para casa com reforço em sua estrutura. A última bota minha que ele consertou, há dois anos, nunca mais abriu a boca. E olha que ela rodou mais de 100 km na Serra das Andorinhas e manteve a fama de estar bem costurada.
Quando cresci e passei a jogar futebol, ele apitou várias partidas em que eu participava, mas sempre manteve a classe e elegância de advertir os jogadores.
O highlander dessa história não era um homem truculento. Sempre achei, quando adolescente, que ele não morreria tão cedo. E o tempo passou, meus filhos passaram a consertar sapatos em sua oficina e essa certeza de que ele era “para sempre” se manteve fiel.
O cearense de Tianguá era um vizinho que não entrava em polêmica. Joguei futebol com alguns de seus filhos e o sorriso no rosto deles tinha as digitais do pai.
Pode ser que choramingasse no quarto, praguejasse escondido de todo mundo, lá pelas décadas de 70 e 80. Era uma criatura caseira e gastava 10 segundos para atravessar da porta da sua casa para a oficina mágica, do outro lado da rua.
Outro highlander que acompanhei ao longo da minha vida é seu Geová Serrano. Soube, esta semana, que estava entubado num leito de UTI, também lutando contra a covid-19.
Era amigo de papai e ele nos visitava sempre em casa, fosse na Lauro Sodré ou na Quadra 9 da Folha 17. Alto, passos lentos, mas sempre altivo, tratava a todos com muita educação. Gostava de percorrer a Velha Marabá em uma bicicleta Monark barra circular. Bigode pela metade, gostava de uma boa prosa. E também de escrever.
Estudei com seu filho mais velho e com ele gazetei muitas aulas no Colégio Plínio Pinheiro para jogarmos futsal na quadra Osorinho, ali ao lado.
Às 19h45. Essa foi a hora exata em que eu soube da morte de seu Geová na noite desta quarta-feira. Estava iniciando esse parágrafo e acabei tendo de mudar título e refazer boa parte do texto.
Quando a Velha Marabá chora vários mortos de uma só vez, é hora de refletirmos sobre a vida. A que temos e a que os outros não têm mais.
Não sei, algumas criaturas não são postas aqui por acaso. Rebentaram para nos dar a chance de sairmos da mediocridade.
(Ulisses Pompeu)
* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira