Correio de Carajás

A professora que chorava nas aulas de matemática

Dona Adelaide foi minha primeira professora de reforço escolar. Não dava aula em colégios, havia nenhuma necessidade. O marido, um major do Exército Brasileiro, tinha salário suficiente pra ela, três filhas moças (quase casadas) e um pastor alemão.

Eu, menino, era obrigado por mamãe a ir, três vezes na semana, à casa sempre arrumada de dona Adelaide, uma mulher alta, de olhos brilhantes e encantadora.

Sentava-me à mesa da sala e punia os olhos para não mirar os decotes no colo farto e o constrangimento de vê-la, quase sempre, chorando e não saber o que dizer…

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Interrompia a aula e pedia segredos na rua por causa de uma infelicidade clandestina. Restava-me balançar a cabeça e fazer silêncio para que pudesse se recompor do vexame na frente do rapazote.

Havia choros de durar uma tabuada inteira. Ou um poema, repetido, que ela me botava para recitar sem afetações e que eu não via o tempo passar nas tardes felizes que ia para sua casa.

Li Florbela Espanca a primeira vez sob os olhares de dona Adelaide. Achava uns chatos, mas outros me empurraram para sentir estranhos pela senhora tão moça que não parecia ser de Marabá.

Antes de Fagner gravar Fumo me encantei ao ouvi-la lendo e, tardes a dentro, pedindo que eu o declarasse. Aí, se derramava em soluços. “Você poderia ler outra vez?”.

Longe de ti são ermos os caminhos,

Longe de ti não há luar nem rosas,

Longe de ti há noites silenciosas,

Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos

Perdidos pelas noites invernosas…

Abertos, sonham mãos cariciosas,

Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram, choram…

Há crisântemos roxos que descoram…

Há murmúrios dolentes de segredos…

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços…

Por causa de dona Henri passei a ter abuso, mais ainda, da matemática e tudo que fosse exato, racional, fechado, cartesiano…

E, também, tinha rejeição ao major, marido e desamor. Nunca me fez um mal, mas a ela… Passei a fazer uma análise psicológica de sua vida, de seus sentimentos e do quanto ruim ele era.

Em Belém, possuía uma amante desde tenente. Inventava missão do Exército e ficava por lá quinze, vinte dias. Como não havia WhatsApp, ele fingia que estava dentro da selva Amazônica, em um rio qualquer que não havia sinal nem de fumaça.

Nessas idas, foi trazendo uma por uma das três filhas e até o pastor alemão da capital paraense. Dona Adelaide não era fértil. Bonita de fazer chover, mas árida. E isso a angustiava.

As meninas, trazidas mamando, não sabiam da missa a metade e não trucidavam o pai porque dona Adelaide sublimava. Evitava, sabia que as garotas não tinham culpa e queria, também, o encantamento de ter crianças por perto.

Esposas, dificilmente, se desquitavam dos maridos. Costumavam, muitas, criar os filhos-das-escapulidas e a vida era aparente.

Mas dona Adelaide não foi só tormentos. Descobri um poema, na sétima série, do Chico Buarque, que a fazia ir indo e me pedia para repetir tardes a dentro…

Ah, se já perdemos a noção da hora. Se juntos já jogamos tudo fora. Me conta agora como hei de partir…

Ah, se ao te conhecer dei pra sonhar, fiz tantos desvarios. Rompi com o mundo, queimei meus navios… Me diz pra onde é que inda posso ir…

Se nós, nas travessuras das noites eternas, já confundimos tanto as nossas pernas… Diz com que pernas eu devo seguir…

O major foi mandado de Marabá para Recife. Dona Adelaide foi junto, mesmo a contragosto. Rodaram por outras cidades do Nordeste, até que de lá ele voltou como coronel. O 52º BIS era sua segunda casa. Adelaide voltou, mas eu já estava na faculdade, não precisava mais de seus préstimos.

Eu a vi duas vezes no Supermercado Peg Pag, na Folha 27. Botamos o papo em dia e entendemos que os encantamentos tinham passado dos dois lados. Ela lastimou que eu não tivesse sido um bom aluno em matemática.

Tudo estava diferente, menos o tamanho de sua tristeza.

* O autor é jornalista há 27 anos e publica crônica na edição de quinta-feira

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.