As construções populares em Marabá abrigam vidas feitas de resistência. Santa Rosa, um dos bairros mais adensados da cidade, espelha essa cidade que foi construída para esperar a enchente.
Ter um segundo andar, pavimento ou até mesmo um jirau não é sinônimo de luxo no Bairro Santa Rosa, mas de sobrevivência. Dez em cada dez famílias que não têm um, sonham em construir para evitar mudar-se quando as águas do Rio Tocantins ultrapassarem a cota de 10 metros acima do nível normal. No bairro são mais de 250 sobrados. Você conhece outro bairro que tenha tantas casas de altos e baixo em Marabá? Certamente não.
A Avenida Silvino Santis, que corta o coração do Santa Rosa, está cheia das casas de dois pavimentos (e comércios também). São mais de 80 nos 2 quilômetros da via, que termina quando inicia o Santa Rita. A maioria foi construída nas últimas duas décadas.
Leia mais:Dentro do Santa Rosa, não há uma rua, por menor que seja, sem ao menos 20% de casas com sobradinho, seja construída com tijolos ou madeira.
Além da Avenida Silvino Santis, destacamos a Avenida Pará, a Rua São Pedro, a São João e até mesmo a Nossa Senhora das Graças, esta última uma das menores do bairro.
Na última semana, a Reportagem do CORREIO percorreu várias ruas dos bairros Santa Rosa e do Cabelo Seco, que também tem casas erguidas como armas contra a enchente (o próprio PAC tem estrutura com essa característica).
A simplicidade, a criatividade e a capacidade de adaptação (de materiais e de vidas) alicerçam as moradias populares, observa o arquiteto. Carlos Alberto Moraes, engenheiro civil, guiou o olhar desta reportagem pelos dois bairros. “A arquitetura popular tem sua graça e também ensina à gente”, considera.
Carlos se refere ao aproveitamento do material de construção em diversas combinações estéticas e funcionais. “Uma sopa de pedras que as pessoas vão fazendo e, de repente, você tem um bairro todo feito dessa forma. É uma característica muito presente de Fortaleza: ter uma cidade informal”, completa.
O engenheiro observa que não há um inventário local dessas construções. Mas elas podem ser vistas em toda a cidade, atenta: “no miolo” da Nova Marabá, “no limite do Bairro Liberdade” com o Independência (na periferia da Cidade Nova), nas comunidades operárias do São Félix… Muitas são construções mistas, para famílias e negócios, elaboradas “na medida das possibilidades das pessoas, com os materiais que você tem à mão e com soluções inovadoras”, conclui Moraes.
Há riscos, por necessários conhecimentos técnicos, ausência de estrutura sanitária, acessibilidade ou urbanização do entorno dessas construções, enumera o engenheiro. Mas a graça está na laje que vira um domingo, ou uma folga antes do próximo expediente, ou um mirante comum. Casa e rua se olham e se falam, atenta Moraes, em um caminho sem muros e de janelas e portas abertas, onde as moradas se juntam umas às outras. E o ensinamento, ressalta Carlos, é “essa resiliência, essa facilidade de se virar e de resolver os problemas da sua condição de vida com pouco. É uma maneira de sobreviver, de subsistir, que é muito própria de Marabá”, diz.
Falta de banheiro é um grande dilema
Morar em um sobradinho em áreas alagadiças durante a enchente tem seus dilemas. Um deles é o transporte. Os moradores ficam ilhados e pra sair de lá, geralmente, só uma pessoa da família, que vai fazer as compras. Sai de canoa ou rabeta, paga cinco reais pra ir e voltar até o “porto” mais próximo. O restante dos membros da família fica enclausurada.
Mas enquanto o térreo está alagado, os membros das famílias ficam no 1º piso. Lá, se espremem. Boa parte desses espaços não está concluída, falta reboco e os quartos ficam entupidos de gente.
E o banheiro?
Bem, aí já é outra história. Porque embora grande parte das casas tenha banheiro lá em cima, o problema maior é que as fossas sépticas estão inundadas e a descarga não funciona. Com muita gente empilhada, toda hora alguém quer ir ao banheiro e aí surge a “criatividade”.
Enquanto alguns têm coragem de urinar ou defecar direto na água da enchente, outros conseguem “desviar” o cano, mas todos, absolutamente, despejam seus dejetos na água que cerca suas moradias.
Na Avenida Pará, Gilberto Martins confessa que não tem outra saída quando a enchente chega. Com muito esforço e economia, trabalhando como vendedor ambulante, ele conseguiu construir o seu sobradinho onde mora ao longo de seis anos.
Do lado de dentro, sete pessoas se aglomeram e esperam o rio descer. Passam o dia assistindo televisão, cantando com auxílio de uma caixa de som do lado de fora (para outros vizinhos ouvirem) e ainda “tomando umas”, porque o sol é quente, mestre!”.
Gilberto confessa que viu os vizinhos da rua construindo sobrados e inculcou-se que também faria o dele para nunca mais mudar-se e ter de ficar dividindo espaço com outras famílias nos abrigos da Prefeitura, que considera insalubres e “fedorentos”.
Construiu o sobrado, mas não idealizou uma solução para a fossa, que enche antes mesmo de a casa alagar. “Esse é o único problema. A gente já tentou até mesmo um tambor de plástico de 200 litros para ficar dependurado, mas enche rápido. Podia a Prefeitura mandar um engenheiro pensar numa solução pra gente nessa época do ano”, sugere.
Na outra ponta do núcleo Marabá Pioneira, no Bairro Cabelo Seco, o problema se repete com a falta de banheiro. Os moradores que resistem em seus sobrados quando a cheia chega, acabam improvisando do mesmo jeito. “Não há o que fazer. Em 12 anos que construímos esse segundo andar, sempre fizemos assim”, diz Aluízio Alves Silva, sem querer detalhar o tal “improviso”.
Em cada sobradinho alagado uma história
Francisca Vieira é a matriarca de uma família grande, tão grande, que ocupa praticamente todos os cômodos do segundo piso de uma casa que ela construiu na Avenida Pará, número 1988.
Ela recebeu a Reportagem do CORREIO nesta quinta-feira sem nenhuma cerimônia. Escancarou os cômodos, apresentou a família (numerosa, né, dona Francisca?). Disse que trabalhou como lavadeira de roupas durante muitos anos, mas quando a idade chegou, acabou deixando a profissão tradicional e virou vendedora ambulante. Foi com o dinheiro apurado e guardado, que acabou conseguindo construir o segundo pavimento de sua casa, seu maior sonho.
Lá, ela mora apenas com o marido, dois filhos e dois netos. Mas em tempos de enchente, outros que moram onde não tem sobrado acabam se aninhando por lá também, principalmente agora, em tempos de pandemia. Chegaram uma filha, esposo e dois netos. Depois um genro, a filha e mais duas netas. “São apenas dois quartos aqui em cima, mas a gente se vira como pode”, diz, orgulhosa.
Dona Francisca mora há 23 anos no mesmo endereço na Avenida Pará, mas foi desde 2013 que não se mudou mais por causa da enchente. Também não gosta do ambiente das barracas cedidas pela Prefeitura e passou a ser mais uma que vive agora no que alguns moradores chamam de “Veneza Marabaense”.
Na casa em frente à dona Francisca, Josiel Pereira Dinniz, o Loirinho, mora com a esposa e dois filhos. Em cima fica a casa e embaixo uma mercearia. Diz que reside ali há cerca de 20 anos e perdeu as contas de quantas vezes foi tangido pela enchente.
O sobrado foi erguido há três anos apenas e, desde então, sossegou e enfrenta a primeira grande enchente nos altos de sua casa, que mede 5 metros de largura por 18 de comprimento. A casa não foi planejada por um engenheiro, mas garante que o pedreiro experiente que a construiu executou bem o serviço e não há rachaduras. “A equipe da SDU passou por aqui, mas engenheiro mesmo não paguei”, diz.
Cleonice Lemos, que mora em um sobradinho de madeira na Avenida Pará, também tem sua história para contar. O marido a deixou há quatro anos e ela ficou com dois filhos para cuidar. É caixa em uma loja e vende espetinho lá mesmo na Velha Marabá aos finais de semana.
Não teve condições de construir uma casa com “alvenaria” e por isso ergue com madeira, aos poucos. Hoje, orgulha-se de não precisar se mudar, mas diz que o maior medo é que um dos filhos seja picado por cobra, principalmente à noite. “A gente nunca sabe como vai ser. Nesse tempo, nem apago as luzes. Eles vêm dormir comigo aqui no meu quarto e a gente acaba se unindo mais”, reconhece.
A dor pode ser diferente, mas o gemido é o mesmo
Em cada casa de sobrado no bairro Santa Rosa há uma dor, uma queixa diferente. Mas ninguém se lastima por morar ali. Estão acostumados com o sobe e desce do rio e a cultura da enchente impregnou-se na vida da grande maioria das pessoas. Elas não pensam em mudar-se para outros bairros, e por isso mesmo acabam investindo nos imóveis que têm.
Marcelo dos Santos e Joelma Santos moram no número 1976 da Avenida Pará, numa casa em que dividem espaço com uma borracharia, que ocupa o cômodo da frente. Dizem que moram há mais de 30 anos naquele perímetro. Mas não conseguiram realizar o sonho de construir o segundo piso. Por isso, são nômades em tempos de enchente.
Ele revela que quando a enchente subiu mais rápido no mês de março, a família chegou a ir para um abrigo da Prefeitura, mas a experiência foi frustrante (mais uma vez). “Nessa época de coronavírus, a gente prefere ficar assim, numa laje emprestada de um vizinho do que lá naquele abrigo, com tudo fedendo e muita gente por perto”, salienta Marcelo.
A família reclama – como a maioria dos flagelados da enchente – da conduta do coordenador da Defesa Civil Municipal, Jairo Milhomem, a quem consideram “bruto” e uma pessoa que não deveria ocupar um cargo público tão importante.
A esposa, Joelma, conta nas mãos o número de pessoas que, com o casal, divide o único cômodo que improvisaram numa laje de vizinhos. Apontando em todas as direções e com medo de errar a quantidade – entre crianças e adultos – a matriarca termina e diz: “Somos onze, seu moço”.
No centro da laje, uma barraca coberta de Brasilit e lona preta esconde os móveis do casal. Uma televisão, uma geladeira, duas camas, fogão e outros utensílios de casa, amontoados nos cantos. “O banheiro, reconhecem, é o grande dilema que enfrentam, depois da própria enchente. “Fazemos o melhor possível”, esquiva-se o patriarca Marcelo Santos.
Na rua de trás, a São Pedro, mais pobre ainda, vivem Rogemilson Conceição Leal e outras sete pessoas. O sobrado, no caso dessa família, é nos fundos da residência, onde se amontoam durante a cheia do Rio Tocantins. Rogemilson diz que a “parte de cima” foi construída há cerca de cinco anos justamente para driblar a enchente quando ela chegasse. “Antigamente, saímos daqui várias vezes por causa da enchente. Desde que esse sobrado foi construído, a gente fica aqui, mesmo com dificuldade”, sustenta.
Francisco Matias viu a Reportagem do Jornal que passava em sua rua, a São Pedro, e gritou do sobradinho que as centenas de famílias nas mesmas condições deles, que ficam “dependuradas”, não recebem cesta básica da Defesa Civil. O jovem Marcos Bezerra, que mora na Rua João Salame, a última do Bairro Santa Rosa, lastima-se que tenha enchido tanto depois que ele deixou seus móveis em um jirau na casa em que reside com a esposa. Motorista de táxi-lotação, o rapaz diz que se divide entre a casa de uma irmã, na Rua São Pedro, e a da sogra, no Residencial Tiradentes. “Não é fácil. De lá, tiramos só as roupas. Tomara que não o rio não suba mais do que isso, senão perderei tudo”, diz. (Ulisses Pompeu)