Helenilde tinha sido apaixonada por Clóvis, que amava o trabalho e os dois amavam a TV quando estavam juntos. Mas era por que mesmo?
Embevecidos do silêncio restavam. Aterrorizados. Medo de olhar de lado e ter de falar. Palavrear o quê? Havia o risco de nem lembrarem do rosto um do outro? E se não disfarçasse a decepção com os pés de galinha dela? E se ela procurasse e não encontrasse o sinal de beleza no rosto, agora redondo, dele?
Nem se mexiam. Insônia e olhares no teto. Vez por outra se viravam pra fora da cama. Não arriscavam o contrário. Nem pensar. Poderiam dar de cara. Marido e mulher. A culpa era da televisão. Pifada, repentinamente, das válvulas ou sei lá do quê. Enquanto durou, ininterruptamente por mais de vinte anos, entreteu. Poupou-lhes, por tempos, de trocar confidências ou conversas bestas.
Leia mais:Mas, agora findavam ali. Mudos, lacrados. Amedrontados de se encontrar e não ter o que dizer. O constrangimento seria medonho. Casados aos vinte anos, estavam perto da idade dos 60. Dois ou três dias mais adiante… Tentavam e encafifavam por não lembrar nem do aniversário um do outro.
Quando namorados, Helenilde e Clóvis festejavam qualquer que fosse a besteira. O primeiro beijo, a flor murcha na agenda, o papel gaiato de Ice Kiss, o guardanapo e rabiscos de amor. Casados, o idílio, até que durou. Dia daqueles, porém, amanheceram estranhos (nem notaram) e foram indo. Trabalhar o dia todo-voltar pra casa à noite-comer-ligar a TV-assistir a novela-adormecer-acordar de novo-trabalhar…
Foi o passamento da televisão que badalou o sino. Assustaram-se. Quem seria aquele gordo, barriga de ogro, peidorrento, a roncar e tomar gosto enquanto hibernava? E aquela, das celulites empestadas, reclamona, das calcinhas brochantes, dos cabelos pintados de acaju e fios louros? Não se conheciam e tinham medo de perguntar o que faziam ali.
Até pensaram em ligar pra polícia ou chamar pelos filhos. Socorrer-se. Mas foi exatamente um dos rebentos que os removeu da ideia. Tomou a bênção de pai e mãe, fez sinal da cruz, pediu pelo anjo da guarda e se meteu entre os dois. Ah, então deveriam se conhecer. Provavelmente. Mas de onde? Quando?
Passaram noites em claro. E se faziam de morto quando um ou outro se aventurava levantar pra beber água ou fazer xixi. Olho pouco aberto, apavoravam-se com o estranho ou a intrusa. Enxergavam defeitos, se incomodavam com o jeito de andar e até com a zoada do mijo no aparelho. Ainda bem que o pivete (quatro ou cinco anos) se metera na cama. Quatro ou cinco anos?
Aos finais de semana, a rotina era diferente. Helenilde agarrava-se aos últimos fios de sono para não enfrentar o fatalismo de uma nova manhã de presságios sinistros, enquanto ele despertava com a inocência de um recém-nascido: cada novo dia era um dia a mais que se ganhava no abismo do silêncio entre ambos.
Ouvia-o despertar com os galos, e seu primeiro sinal de vida era uma tosse sem som nem tom que parecia de propósito para que ela também despertasse. Ouvia-o resmungar só para inquietá-la, enquanto tateava em busca dos chinelos que deviam estar juntos da cama. Ouvia-o buscar caminho até o banheiro aos tropeços pela escuridão.
Durou isso, mais de três anos e alguns dias. Nenhuma palavra, nenhum toque. Durante a semana, quem conseguia dormir, ele ou ela, acordava cedo e se metia rápido em qualquer roupa e desembestava para o trabalho. Não desejavam se cruzar. Falar o quê? Graças a Deus, a televisão tornou. Posta na frente da cama, ligada até pegarem no sono…
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.