A ligação de meu filho Breno chegou em horário incomum e dia improvável para uma reportagem. Era domingo. Então, pensei que fosse me convidar para jogar vôlei na quadra pública da Cidade Nova. Mas não. Sua voz tinha caráter de urgência e começou a me contar a história de uma adolescente que ele acabara de conhecer e tinha certeza que eu também adoraria. Ele estava certo.
Bastou me dizer que ela gostava de ler, ler e ler, que parei o que estava fazendo no computador naquela hora e foquei na história. Ele fez entrevista com a garota para um documentário que estava produzindo, mas avaliou que eu também gostaria de fazer o mesmo, ir mais a fundo e transformar o enredo de Thalyta em uma reportagem de profundidade.
A empolgação de Breno era tanta que a ligação durou 37 minutos e a história parecia não acabar. Ficou encantado com uma menina de 14 anos, vivendo no final de um bairro periférico com a mãe e outra irmã, mas que tinha propósitos invejáveis.
Leia mais:De tanto ouvir sobre a garota, na terça-feira da última semana, eu mesmo resolvi procurar aquela casa. Juntei Evangelista Rocha, o fotógrafo do jornal, Ana Mangas, uma de minhas parceiras de reportagens especiais e rumamos para a invasão da Fanta. O localizador indicava que a rua estava acabando e a mata chegando.
E quando chegamos, encontramos três mulheres em uma casa humilde. Móveis? Quase nada. Alimentos na geladeira? Quase nada. Livros? Havia muitos. Estante para colocá-los? Nenhuma.
A conversa com a mãe revelou-se um enredo de uma novela de superação, apesar dos sofrimentos pelos quais passam. Enquanto muitos estudantes abandonaram a escola na pandemia, Thalyta permaneceu firme nas aulas remotas e determinada mais ainda quando retornaram, há dois meses e meio.
O que Breno me contara era tudo verdade. E mais ainda. Fomos àquela casa na intenção de saber em que poderíamos ajudar. Geralmente, as famílias pedem ajuda em alimentos, roupas ou até emprego. Mas Thalita queria apenas uma estante para colocar seus livros. A única mesa da casa, velha, estava toda ocupada pelos vários títulos de obras com até 500 páginas.
E se você perguntar, ela é capaz de sintetizar cada um deles com a leveza de quem acabou de ler. Minhas emoções estavam em tumulto ao ouvir os intermináveis ecos daquela súplica. Estava com raiva e em choque. Como se permitia tamanha injustiça?
Como, uma menina tão doce e apaixonada pela leitura não tem uma estante para colocar os livros que tanto ama?
Enquanto muitas meninas de sua idade pedem aos pais um celular novo, uma roupa nova para ir às festas de fim de ano, Thalyta queria apenas uma estante.
A história de Thalyta, sua mãe e professores está contada em duas páginas desta edição do CORREIO, por mim e Ana Mangas, com imagens de Evangelista Rocha. Além de ouvir sua súplica, quisemos levá-la a outros ouvidos que pudessem ajudar.
Apareceram vários corações bondosos. O primeiro que se dispôs foi de outra amiga, Luciana Marschall, uma jornalista apaixonada por livros e leitura. Ainda no domingo ela vaticinou: “vou dar a estante novinha que está lá em casa e nunca foi montada. Eu e Jair vamos nos virar para comprar outra”.
Sim, há outras carências que Thalyta e sua família têm. Você pode conferi-las nas páginas 6 e 7 deste caderno.
Mas neste final de ano, não se esqueça que há muitas Thalytas por aí, precisando muito da nossa ajuda. Não sei se o que fiz vai alterar as vidas daquelas três mulheres. Mas isto sei: não pode faltar sensibilidade no coração do jornalista. Precisamos sempre ouvir uma obcecante súplica. Neste caso, a súplica de Thalita.
* O autor é jornalista do CORREIO há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira