A história que conto a seguir é triste e delicada. Primeiro, porque fala de morte na adolescência. Segundo, porque conta as últimas horas de um menino que – por depoimentos de amigos – apontam para um garoto acuado entre parentes por ser gay. Terceiro, a narrativa é assumidamente um alerta e uma provocação para pais esquadrinharem o nível de abertura e diálogo que têm com os rebentos. Cada qual com suas diferenças e demandas.
O garoto era meu parente e o desfecho me cortou ainda mais o coração pelo que não fizemos para evitar a tragédia. Uma conversa agoniante dominou o velho Orkut na época, envolvendo dezenas de adolescentes que se relacionavam na eufórica daquela rede social. Os posts davam conta da decisão inesperada de um menino de 16 anos que resolveu por fim à vida. Numa carta, destinada aos amigos, o rapaz tentava justificar a partida.
“Eu estava esperando o momento certo para fazer isso… Podem falar pra quem quiser, eu não ligo, nunca fui certo nessa história. Mas eu só preciso justificar isso. Consertar as coisas… Me desculpem. É tão difícil sair de um lugar e perder tudo que você tem e ir para um lugar que sua mãe diz não lhe querer, seu pai diz que pode matar você e que sua avó age como se você tivesse uma doença… ”.
Leia mais:Ex-estudante de uma escola de classe média em Marabá, o adolescente se mudou para Teresina. Lá, longe dos amigos de pátio, dos rolês e da rua em que morava – outros meninos e meninas que ele desenhava encontrar refúgio – teria passado a se sentir mais isolado e confuso sobre a condição de adolescente diferente.
“Têm pessoas, como a R e você L, que são uma das poucas pessoas que me restam. Eu perdi tudo. Mas eu também cometo erros. Muito mais do que todo mundo. É que perder vocês, significaria muito pra mim. Y, todos nós temos problemas mesmo. E, pessoal, eu sei que vão ler isso e rir de mim. Mas não é humilhação, não pra mim. Me desculpem”.
O menino, que os colegas rabiscam perilampos, corujas, sacis e espadas, esbanjava dançar ao som de Adele, Lady Gaga e Glee. Nele, moraria dois personagens. O de dentro da casa onde foi escolhido pra nascer e outro, quando estava longe dos olhares do pai, da mãe e da avó. Longe da ausência.
Foi numa tarde em que o pai não estava em casa – quase nunca estava – que ele chamou a genitora para o quarto – se pelando de medo – e resolveu revelar quem era em tom confessional: “mãe, eu sou gay”.
Ele esperava ter nela uma protetora, alguém que, mesmo que não aceitasse, lhe entenderia. Mas a revelação não só caiu como uma bomba para a mãe, como também a fez sufocar o garoto com um discurso inflamado e preconceituoso. E na mesma noite contou ao marido, esperando que ele mudasse a cabeça do filho e o fizesse gostar de garotas antes que o dia amanhecesse.
Era filho único e o clima em casa foi transformado. Quando percebeu que não havia mais lugar para si ali, o adolescente insistiu, duas semanas depois, em ir morar com uma tia em Teresina, onde queria estudar medicina. Foi de avião no final daquele ano. E de lá, mantinha relações com poucos amigos de Marabá, via Orkut.
Uma aula na escola em Teresina teria despertado um desejo estranho no garoto: “A aula de biologia foi muito produtiva hoje. Muitos analgésicos podem matar. Certo?”, escreveu. Ao que uma amiga respondeu: “Jesus te ama, não é isso que Ele quer para você”…
E no tempo em que os posts viraram cartas e capítulos da vidinha explícita de cada um, o adolescente teclou: “Tá na hora de tomar uma decisão e tentar acabar com meu sofrimento. My last hours”. E assim o fez.
… “Por que você teve que fazer isso? Por que?”, choramingou uma amiga que foi curtida por outros quatro.
E, ainda hoje, penso na história do rapaz e de tantos outros que sofrem calado com medo de revelar desejos e quem são.
* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira