A coisa entre os dois começou numa manhã nublada na maloca da Escola Pequeno Príncipe, na Folha 32. Era recreio e Joelson, da 8ª Série, estava encantado por Luzia, da 7ª.
Começaram a história depois que ele assinou o nome no gesso dela. Coraçãozinho em vermelho escrito com Bic (escrita fina) e flecha transpassada de suspiros. Havia pisado em falso e torcido o mocotó roliço. No colégio mais badalado da cidade, nos anos 80, não havia esse que não desejasse colocar uma bota no tornozelo ou vestir uma luva branca. Quinze dias, um mês. Jeito de chamar a atenção e virar alvo dos paqueras.
Lá vinha ela, cachingando. Pé em cima, pé embaixo. Vertendo a bacia e sensualmente dando meio giro na bunda saliente. Era o salto de borracha que desmantelava. Sainha vermelha pregueada, blusa de mangas e cintura sanfonada. Livros acomodados no braço esquerdo, como se carregasse um menino Jesus por seu Antônio.
Leia mais:Quando tocava o sino para a saída, ele corria, meio sem jeito e envergonhado, pra acudi-la. Tomava-lhe os livros, o caderno 12 matérias, a prancheta transparente-laranja e oferecia o ombro. Cerca de 30 metros até o portão e um silêncio tímido de dizer muita coisa. Tinham de aproveitar os horários vagos e recreios para colocar a conversa em dia. E era assim, ela vivia no quadro de honras e sentava na fileira da frente. Perto da lousa. O menino, nariz de Bergerac, peito fundo, sinais de beleza e barba rala, se arrastava pra passar. Bimestrais, recuperação, ré-ré. Escapava fedendo. Não era bom em matemática, mas adorava Machado de Assis.
No último dia de aula tinha sempre uma festinha para comemorar num sei nem o quê. As meninas levavam bolos e salgados e os meninos, invariavelmente, refrigerantes. Naquele dia, emendaram um beijo e depois dois silêncios. Beijaram-se de novo, bem muito, outro beijo e ficaram calados. Prometeram se casar. Depois que passassem no vestibular e colassem grau. Por causa dela, não iria mas fazer o concurso pra piloto da Aeronáutica, nem Agulhas Negras. Distância. Tentariam, juntos, entrar no Banco do Brasil, Caixa ou até mesmo Banpará. Paris. Beijaram-se outra vez e marcaram se encontrar na festa daquele domingo, no Yara Clube.
Tanto ela e ele chegaram cedo, a fila já ia longe. Melhor. O pai dela demoraria a vir buscá-la. E conversaram o quanto demorou a demora e mais um bocadinho. O clube estava cheio naquele matinê e tocava Michael Jackson quase toda hora. Mudavam apenas a faixa. Dançaram e suaram, como todos entravam naquele imenso caldeirão de telha Brasilit.
Joelson e Luzia queriam mais que um matinê para ficar juntos. Precisavam de todo o tempo da eternidade para conversar, se olharem e dizer o quanto se amavam.
Por coincidência (as coincidências fiam paixões), ele sacou do bolso um bilhete de Mario Quintana. E redisseram mais ou menos desse jeito:
Na hora que padre ordenasse, não repetiriam que viveriam doravante na dor e na alegria, na saúde e doença. Tomariam rumo diferente. Prometeriam, um ao outro, cortejarem-se infinito. Pra que não achassem que todo casamento, um dia, finda na mesmice. Que sexo viria sem pudores e filhos, por vontade e amor. Que rotina é desculpa pra mau humor e ausência de gentilezas, sentimentalidades e palavras morangos.
Que a passagem do tempo não seria um fardo, nem as pedras um Sísifo (não sabe o que é? Assista à nova série da Netflix). Que cabelos brancos, uma barriguinha, seios caídos ou as potências murchas não eram sinais de romances findos… Beijaram-se e, acreditem, foram felizes para sempre.
* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica às quintas-feiras