Correio de Carajás

Zé: do amor hétero ao homoafetivo em 30 anos

Há 10 anos, Zé aposentou-se do DNIT em Marabá. Sua vida pode ser dividida entre o antes e o depois desse episódio que mudou completamente seu destino. E de várias outras pessoas em sua volta.

Ele era paulista, mas veio para Marabá tangido pelo próprio órgão em que trabalhava, no final da década de 1970, para ajudar nas ações de melhorias da BR-230, a Transamazônica, que acabara de ser implantada, mas que tinha enormes desafios. Aqui foi ficando, enquanto muitos outros colegas voltaram para suas cidades nos anos seguintes.

Aos 30, Zé amou pela primeira vez. Era uma mulher baixa, de família tradicional que coordenava um órgão importante na cidade. O relacionamento, pra bem dizer, foi assim meio uma forma de organizar a vida dele, que não tinha lugar certo para comer e nem quem lhe passasse as roupas ou organizasse a casa.

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O casamento, sacramentado dois anos após o início do relacionamento, sempre foi conveniente para os dois. Maria das Graça contentou-se com as migalhas de sexo oferecidas por Zé desde sempre e, mais ainda, após o nascimento do único filho que tiveram: Zezinho, querido por um, amado por outra.

O que mais souberam fazer de bom foi aumentar o patrimônio da família. Cada um colocava fermento de um lado e, daqui a pouco, passaram a ser latifundiários urbanos na Cidade Nova, com vários imóveis de aluguel.

No trabalho, Zé precisava fazer algumas viagens. E foi numa dela, para os rumos de Novo Repartimento, há cerca de 15 anos, que ele topou com Gildásio, um colega do DNIT que veio de Belém. Passaram duas semanas atuando em um trecho onde uma ponte na Transamazônica se desmanchara numa chuva forte de inverno. Ficaram amigos, trocaram telefones e ora e outra estavam trabalhando juntos na imensidão da Transamargura. Faziam de tudo para estar juntos, fosse em Marabá, ou mesmo em viagens tempestivas de zé para Belém.

Por anos, maquinou uma revolução. Mas lhe carecia o desplante de um jagunço. Encomendaria a própria morte, por assim dizer, e ressuscitaria, agora sim, outro. Como deveria ter sido desde tempos.

Um tiro, uma punhalada numa cilada. Planejou desfazer de si sem o dó da tocaia, já que não tinha a insolência para a guerrilha. Mudar do dia para noite, entardecer trocado? Querer-se bem sem culpa e ter a convicção que não era um avesso? Recuava de véspera.

Em casa, Zé continuava dando assistência para a esposa, sempre que possível – mas cada ano mais esparsadas. O filho lhe trazia muitas alegrias. O levava para escola, natação, aula de piano e até a Praça São Francisco, onde se divertiam como duas crianças. E o pai sempre se imaginava assim. Queria liberdade, se afastar das responsabilidades e viver a vida como desejasse.

O filho cresceu, foi cursar o ensino médio e a primeira graduação em Belém. Fez fisioterapia, mas queria mesmo medicina. Foi então que os pais decidiram pagar uma faculdade particular para o rebento. Partiu, São Paulo! Mas como tudo tem custo, venderam uma das casas para fazer frente às maiores despesas do rapaz.

Chegou o tempo da aposentadoria. Maria das Graças deixou de trabalhar primeiro e ficou cuidando dos imóveis. Zé permaneceu no local de trabalho por mais dois anos, quando finalmente deu entrada na documentação e aposentadoria foi publicada no Diário Oficial da União dois meses depois. Aos 66, não queria grandes compromissos em Marabá.

Só depois dos 66, criou coragem e verteu. Já ia com 30 anos de casamento, um filho. Havia passado pelo Encontro do Senhor com os Casais Cristãos e pouca gente engoliu o hétero. Paciência.

Zé chamou Graça, contou a história e disse que iria embora para Belém. E foi. Gilsádio o esperava na rodoviária da Capital. A separação causou grandes impactos na mulher, que foi chamada para morar com a filha em São Paulo, menos de um ano depois. Há um ano morreu de desgosto esquecida na maior cidade de Belém.

Zé? Aos 76 participa de grupos de excussão de idosos por várias partes do País. Sempre ao lado de Gildásio, com quem venceu a covid-19 isolados propositalmente em um apê no centro de Belém.

 

 

* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônicas às quintas-feiras

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.