Correio de Carajás

Véi: o último encontro e o amor com hora marcada

Quando eu estudava com Erisvan no Pequeno Príncipe, na década de 1980, não imaginava que um dia ele seria um policial militar. Nós morávamos na Folha 17, duas ruas de diferença um do outro. Éramos parceiros de futebol, de molecagens e sua família era evangélica, assim como a minha.

No último domingo, depois que ele perdeu a vida em um trágico acidente durante um passeio de um grupo de motoqueiros, fiz um flashback do filme das vezes que nos encontramos em situações convergentes ou antagônicas.

A última foi em uma sorveteria da cidade há alguns meses. Eu estava tomando um sorvete de açaí com tapioca e ele chegou com sua moto possante e uma namorada de causar inveja.

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Erisvan estava aposentado da Polícia Militar, onde era conhecido pelo apelido de “Cachimbo”. Não faço ideia por que o chamavam assim. Mas nós, colegas de antigamente, os amigos e até familiares, tínhamos outra antonomásia para ele. Era “Véi”, só isso. Crescemos usando esse código e por vezes eu até esquecia seu verdadeiro nome.

Mas foi durante o velório que ouvi a melhor história de sua vida. Não era sobre sua atuação no quartel, a vila de quitinete que administrava e nem sobre os amores que teve ao longo do tempo. Mas sobre a relação com a mãe e as filhas. Todos os dias, bem cedo, a mãe dele postava no grupo de WhatsApp da família que o café já estava pronto.

Todos os dias, de segunda a sexta, Véi saía da Folha 16 e ia à casa de sua mãe, dona Dica, na Folha 17, para tomar café e já levava uma sacola de pão. Mais do que café, leite, pão, bolo frito ou outra guloseima à mesa, havia ali amor, cuidado, proteção mútua, respeito e gratidão. Era uma hora importante para todos eles. E suas filhas estavam sempre ali, desfrutando da companhia do pai.

No sábado que antecedeu sua morte, Véi quebrou o protocolo e foi à casa da mãe para o desjejum. No dia seguinte, durante o velório, um familiar me contou que a sacola ainda estava em cima da mesa da casa da mãe, com parte dos pães que não foram comidos.

Naquele sábado à noite, Erisvan foi à festa de aniversário de um de seus irmãos na casa de Maria de Jesus, professora e sua irmã-protetora. Uma raridade, mas todos os irmãos e sobrinhos estavam presentes. Parecia uma festa de despedida para Véi.

Uma das filhas estava orgulhosa porque tinha marcado o casamento para agosto próximo e o pai iria entrar com ela no altar vestido com uniforme de gala da PM, como ela desejava. Mas o sonho se transformou em pesadelo na curva da morte perto de Abel Figueiredo na manhã de domingo, quando um grupo de amigos motoqueiros sucumbiu num choque violento com um trator.

Desde então, fiquei remoendo aquele café da manhã que não aconteceu no domingo. Aquela sacola com pão que ficou intacta, testemunha muda de um gesto interrompido. A imagem de Véi, rindo com os irmãos na noite anterior, voltou à minha cabeça como um filme em câmera lenta. Era como se, sem saber, ele estivesse se despedindo de todos.

Na vida, a gente corre tanto, se ocupa com tanta coisa, adia visitas, ignora ligações, esquece aniversários, e vai empurrando os momentos simples com a barriga, como se o amanhã fosse um crédito garantido. Mas não é. E às vezes, o que fica é uma sacola cheia de pão sobre a mesa, uma cadeira vazia na sala e um silêncio doído entre uma lembrança e outra.

A história de Erisvan me ensinou de novo o que eu já sabia, mas vivia esquecendo: família é urgência, é agora, é presença. Não existe luxo maior do que poder tomar café na casa da mãe, ouvir a risada das filhas, ou dividir um pedaço de bolo com quem a gente ama. Cada conversa, cada abraço, cada rotina repetida tem valor de eternidade.

Por isso, se puder, volte para casa hoje. Ligue para quem faz falta. Pegue o pão, leve o afeto. Porque a vida é um fio fino, e o amor — esse amor que segura a gente na estrada — não pode ser deixado para depois.

 

 

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.