Ah, como é chata, às vezes, a família. Inconveniente, diria. Alguns que patrulham a vida dos outros e se importam com o que não lhes diz respeito. De uma crueldade cortante e sem gentilezas.
Quando mamãe usou, anos depois, uma calça comprida azul marinho, ela não estava mais em Marabá. Tinha mais de 45 anos e vivia com minha irmã Raquel Pompeu em São Paulo. Quando voltava a Marabá para passear, só vestia saia porque minhas tias se rasgaram escandalizadas e invejosas.
Noutro dia, ouvi uma história que eu pensava já superada pelos dias agora. Mas continua igual. Quando se morria lá em casa, o falecido dava as cartas por algumas semanas.
Leia mais:Ele não. Mas os vivos, cheios de culpa pelas tampas e com remorsos porque deixaram de fazer isso ou aquilo pelo fulano. Havia obrigação de botar luto por não sei quantos dias. De fazerem silêncio o rádio e a televisão, que a gente, menino, não poderia ligar para não quebrar o luto.
Também não podia haver dança. De ser proibido de ir à praça Duque de Caxias, de se divertir no matinê do Cine Marrocos. De não ter jogo de bola e não poder chupar uma uva doce… De ser interditado de qualquer manifesto do ridículo em respeito ao ausente. E, sim, de serem cancelados os aniversários de crianças. Ah, meus amigos, isso eu não suportava.
Pois bem. Também era considerada desfeita qualquer familiar não ir ao velório ou enterro de um parente. Mesmo que fosse um mau caráter ou daqueles insuportáveis cafajestes que se dobra a esquina para não cumprimentá-lo.
Faltaram matar minha tia Salatiana, já madura e que havia sido mãe solteira na adolescência. Imaginem! Mulher de um filho só e um cachorro chamado Gota. Companheiro que evitava a solidão.
Aconteceu de uma das irmãs dela, a mais velha, ter tido uma congestão após comer uma mão de vaca e um pirão pegando fogo. Descalça, pisando no chão frio, foi se assear depois de farta. Caiu fulminada entre a sentina e a tina.
Alvoroço, chororô e vela. Mais surpreendente, no mesmo dia do fenecimento, a irmã que morava vizinha a ela passou mal com a notícia e o coração rachou. Imaginem o tamanho da quase tragédia em família.
Titia, a do cachorro Gota, até se preparou para ir ao enterro das duas. Mas acabou mudando os planos por causa de um passamento súbito do companheiro inseparável. O bicho endureceu, não respirava, não latia, não se mexia… Havia morrido também. Puxa!
Entre as irmãs, chatas que foram a vida toda, e o enterro do Gota, escolheu se despedir do amigo velho. Nem titubeou. E achei foi bom.
Quando engravidou na adolescência, as duas urubus lhe tiram o couro. Ficou interditada das festas em família e não foi à minha primeira apresentação na igreja porque as duas impuseram o falso moralismo.
O que fizesse, davam conta e atazanavam a “rapariga”. Titia nunca foi de aguentar homem acostumado, grosseiro, que não queria lavar uma xícara suja.
Quando o amor virava paisagem, mandava o cabra pegar o beco. Nunca dependeu deles. Teve muitos homens (e algumas moças). E isso empolava as virilhas das duas irmãs mais velhas. Mal-amadas, encalacradas no matrimônio. Mesmo que uma porcaria a dois.
Pois fui com ela fazer o enterro do Gota, debaixo da goiabeira. E, antes, fomos à igreja São Félix de Valois porque ela queria colocar o nome dele nas intenções da missa. Lógico, o padre da época não sabia se tratar de um cachorro.
Para susto e milagre lazarento, eis que o cão deu um salto de égua e acordou da morte. Foi sim! Reviveu. Ficou em pé, se coçou e saiu como se nada tivesse havido. Não é mentira.
Minhas tias? Viraram múmias e toda a família chorou lágrimas de rinoceronte… E fofocou para não perder o hábito. Um cachorro pelas irmãs!? E tricotam até hoje os maledicentes…
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.