Três, e apenas três vezes em minha vida eu o avistei, em todas tive a certeza de sua força; também creio que seja a quantidade provável durante o intervalo comum de uma existência. Alguém um dia me afirmou que talvez sua maior astúcia seja a de nos fazer acreditar que ele não existe – e na maioria das vezes consegue seu intento.
Na primeira vez me surpreendi: Eu vinha distraído pela rua 5 de Abril, admirando casarões antigos – lembro que pensava nas quantas vidas aqueles prédios quase centenários abandonados haviam abrigado antes de se tornarem um amontoado de escombros –, quando distingui, dobrando a esquina, um vulto deslocar-se em minha direção, na mesma calçada.
Meti as mãos nos bolsos e firmei o passo para cruzar logo com o estranho; a poucos metros dele levantei discretamente a vista, com certeza por medo (também por curiosidade). O rosto protegido pela penumbra não me deixava ver com nitidez os traços; porém quando emparelhei com ele adquiriu uma intensa luminosidade (talvez a lua tenha aparecido entre as frestas dos galhos de alguma árvore), e por um breve instante vislumbrei seus traços finos e firmes (apesar das muitas rugas e do cabelo ralo e esbranquiçado); olhou-me calmo e no canto do lábio notei um risinho maroto; nesse momento um calafrio percorreu-me a espinha… Apressei o passo e, involuntariamente, virei-me por sobre o ombro… mas não avistei ninguém.
Leia mais:O tempo passou, esqueci o episódio, até que bem uns vinte anos depois tive outra experiência esquisita. Eu vinha numa viagem demorada, atravessando uma região seca entre Marabá e Belém. Passava muito da meia-noite, já dormira bastante, de repente acordei com o ônibus dando partida; devia ter parado sem que eu acordasse; despertei meio atordoado e notei que havia subido um passageiro, que se movia pelo corredor e, lentamente, se encaminhava para a traseira do veículo, apesar de não haver quase passageiros nas poltronas da frente, sendo a minha a última a estar ocupada; no instante em que o homem passou por mim (notei se tratar de um indivíduo da minha idade), senti a mesma sensação do incidente há tanto tempo ocorrido: novamente aquele frio na espinha… daí não consegui mais dormir – de vez em quando me virava para a poltrona no final do corredor escuro. Demorou uma eternidade para clarear; todos os pensamentos seguiram na direção do indivíduo sentado na retaguarda: assim que amanheceu fingi tirar algo da mala no bagageiro logo acima de minha cabeça com a finalidade única de espreitá-lo… porém a surpresa: a cadeira estava vazia; nem sinal dele: Peguei rápido meus pertences e me sentei na primeira fila, evitando olhar para trás.
Também o tempo apagou as lembranças desse acontecimento: acho até que teria morrido sem recordar o triste episódio, não fosse ele ter-se repetido há poucos dias comigo: era uma tarde quente, dessas em que todas as nossas energias são gastas no achar uma maneira tranquila de voltar o mais rápido possível para casa.
Subi no coletivo com essa intenção, quando senti um vento frio atrás da nuca: uma aragem bem gelada percorreu-me o corpo (vale esclarecer que estamos no verão escaldante). Virei-me imediatamente ao ouvir um ruflar de asas logo às minhas costas – um último passageiro agarrou a maçaneta da porta com o ônibus em movimento, sequer percebi que a porta já se encontrava fechada.
O rapaz passou rapidamente por mim, atravessando o veículo inteiro, e quando se preparava para descer voltou-se em minha direção (vi em seu rosto jovem todas as energias que um dia foram minhas) – e só nesse momento me dei conta de que aquela era a terceira (e talvez a última) vez que ele me aparecia de maneira assim tão súbita.
* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.