A região de Carajás elegeu sua primeira vereadora transexual. Com 438 votos, Paula Bulcão de Araújo, conhecida como Paulinha da Saúde, foi a 5ª candidata mais votada em Eldorado do Carajás, que conta com 13 cadeiras na Câmara Municipal.
A trajetória dela é marcada por muitas lutas, desde a infância, com 12 anos, quando começou a perceber que era “diferente”, o que rendeu uma ‘taca’ da mãe, a saída precoce de casa e o início de uma carreira na política. A Reportagem do Jornal Correio foi até Eldorado para conhecer mais sobre Paulinha e a vida que leva no município de 33.940 pessoas, conforme estimativa do IBGE para 2020.
Combinamos de encontrá-la na tarde da terça-feira (17), por onde ela estivesse e, ao chegarmos, por volta das 16h20, ela comunicou estar no Hospital Municipal. Lá, Paulinha estava trabalhando, encaminhando pacientes para serem atendidos. Na mão direita carregava uma sacola com um enorme pedaço de carne. Na esquerda uma garrafa PET com dois litros de leite fresquinho.
Leia mais:Os dois alimentos foram presentes de pessoas que ela ajudou a conseguir atendimento hospitalar, pois, na verdade, embora o nome de urna traga a referência à saúde, Paulinha não é profissional da área. Ficou conhecida desta forma, entretanto, devido à amizade com médicos, enfermeiros e outros funcionários do local, que deram a ela a liberdade de conseguir quebrar algumas burocracias do processo.
“Minha família sempre morou no bairro do Hospital e para ajudar nas despesas eu ia, desde meus sete anos de idade, com meu irmão vender pão, tapioca, geladinho e outros alimentos (no hospital). Por sempre estar por ali e conhecer os profissionais eu fiz muitas amizades e as pessoas acabavam me pedindo favores, justamente por eu ter a amizade. Hoje, com 32 anos, eu conheço médicos de Santarém, Belém, São Paulo, já ajudei até levar pessoas para o Hospital de Câncer de Barretos”, conta Paulinha, com orgulho.
Com isso, ela ampliou os conhecimentos sobre os trâmites da saúde e decidiu que estava na hora de seguir uma carreira pública. Em 2014, entrou para o Conselho Municipal de Saúde de Eldorado e até mesmo tentou ser eleger conselheira tutelar, porém, sem vitória. Nas Eleições 2016, pela primeira vez, Paulinha se candidatou a vereadora, mas também não conseguiu chegar lá.
“Apesar disso, eu continuei trabalhando por Eldorado, ajudando as pessoas a terem acesso à saúde e hoje ocupo um cargo de assessora da primeira dama do Município, Elis Regina. Quando chegaram as Eleições 2020 eu decidi novamente entrar como vereadora e, desta vez, eu ‘levei’. Apesar das minhas amizades, havia ainda muitas barreiras que eu percebi que só são derrubadas quando somos alguém que vale o que temos”, disse Paulinha.
CAMPANHA DIFÍCIL, MONAMUR!
Uma campanha eleitoral não é fácil, como a própria Paulinha já admitiu para a Reportagem. A pandemia do novo coronavírus, diz, dificultou mais ainda a estrada até a vitória. A vereadora conta que foi graças à sua equipe que conseguiu fazer uma boa campanha.
“Minha equipe eram meus amigos e minha família, foi Deus que os colocou ao meu lado, e fizemos uma campanha organizada. Separávamos turmas para ir de casa em casa pedindo voto, falando do meu trabalho e trajetória, apesar de grande parte da cidade já me conhecer. Para mim mesma, não foi difícil, mas confesso que deu trabalho, foi puxado”, admitiu a futura vereadora.
As redes sociais foram um desafio para Paulinha, já que ela não gosta da exposição virtual, porém confessa que precisou se adaptar. “Minha assessora ficava insistindo, ‘vamos, me dê o celular, faça a barba, se arrume’. Ela me cobrava. Eu não gosto de fotos e nem vídeos, acho que não tirei uma foto com eleitor ou nas campanhas. Inclusive, a única foto que fizemos foi para confeccionar os santinhos”, relembra.
Apoio da família foi essencial para ser eleita
A Reportagem visitou a residência de Paulinha e a mãe, próxima ao Hospital Municipal, e pôde ver de perto a realidade da família. O casebre é feito de madeira, possui dois cômodos e é bem simples. Nas paredes, há retratos dos 11 filhos de Luiza Bulcão, a mãe de Paulinha.
Ela conta que teve 19 filhos, porém, oito faleceram ainda crianças, não passando dos três anos de idade. “Inclusive, meu falecido esposo, que é pai de Paulinha, não a aceitava, mas eu ‘briguei’ por ela, não admiti que ele discriminasse, afinal, ainda é nossa filha. E outra, sempre foi muito trabalhadora, desde os sete anos de idade ela gostava de produzir comigo pão, beiju, milho, colher feijões, quebrar milho, fazer canjica, entre outras coisas”, lembra Luiza.
Mas a idosa confessa que não aceitou muito bem a identidade de Paulinha quando passou a escutar rumores sobre a filha pela cidade. Um dia a chamou para esclarecer tudo, foi quando a vereadora eleita foi sincera com a mãe. “Eu dei-lhe uma boa ‘pisa’ porque ela mereceu, depois veio dizer que sairia de casa, e foi o que fez. Desde então, ela nunca mais precisou de um prato de comida meu, foi independente desde então”, conta Luiza.
Os anos se passaram, o pai de Paulinha faleceu e Luiza se casou com Pedro Vieira Santana, que retribuiu todo o amor e carinho que a vereadora não teve do genitor. “Nunca rejeitei nenhum dos filhos de Luiza, ainda mais Paulinha, que me ajudou em um momento difícil. Eu tive câncer de próstata e precisei me operar e foi ela quem conseguiu agilizar tudo para mim. Agradeço primeiro a Deus, depois ao médico e terceiro a ela”, agradece Pedro.
A mãe e o padrasto esboçam um sorriso imenso quando perguntados sobre a vitória da filha, pois, para eles, foi merecida por conta de todas as lutas e trabalhos sociais que Paulinha tem feito. “Eu espero que continue assim, fazendo muito mais pela população, ajudando todos que precisam da saúde, pois é do que ela gosta”, alegra-se Luiza.
Nunca esquecerá das amigas e companheiras LGBTQ+, afirma
Apesar da grande causa de Paulinha ser a saúde, graças à notoriedade e influência na área, ela afirma que não deixará de erguer a bandeira arco-íris e defender as amigas e companheiras que também são LGBTQ+. O que se percebe, entretanto, é que a vereadora eleita encara o preconceito contra essa minoria como algo interno, onde apenas a aceitação própria é suficiente para superar a discriminação.
“Há muitos que não se aceitam, se escondem, e não há necessidade. O preconceito para mim é quando a pessoa não se define ou não quer falar o que é para não magoar. Eu com 12 anos me assumi dentro de casa e minha família pode até não gostar, mas pelo menos me respeita e isso que importa”, justifica Paulinha.
Quando perguntada se tem receio de algum vereador a atacar por conta de sua orientação sexual e identidade, Paulinha é bem sincera: “Primeiro porque eu tenho uma resposta para tudo, então, se eles tentarem me atacar dessa forma, eles vão se ‘lascar’. Segundo, que isso pode até configurar em quebra de decoro, então isso jamais vai me abalar”, finaliza Paulinha. (Zeus Bandeira)