É terça-feira à noite. Eu estava de jejum de escrever aqui neste espaço por duas semanas. Começo assim a crônica de hoje, com troca de bilhetinhos. Primeiro com a Carlinha. Carlinha é a mesma Carla Alana Dias, professora, parceira de escola nos anos 2000 e amiga de falar da vida dos outros. É muito bom falar da vida alheia.
Escreveu-me emocionada com o retorno e o esbarro, em um dos corredores do shopping, de duas colegas que estavam afastadas do ofício porque a vida, num ou noutro repente, nos acerta inesperados loopings.
Disse-me com voz de texto. Presenciei o reencontro de duas colegas. Uma, 1 mês pós-morte do marido. Outra, 1 ano pós-tratamento contra o câncer. Num abraço quiseram saber da vida.
Leia mais:Uma respondeu: “É um processo difícil, mas preciso reiniciar. Tenho que retomar a vida, voltar à sala de aula, talvez. A outra repetiu tudo. Mesmas palavras, quase o mesmo olhar. Riram, riram-se. Achei triste, alegre, enchi os olhos d’água, chovi discreto e, depois, se encheu de vagalumes.
O reencontro foi entre Sueli Estela e Neila Fontenele. Duas carpinteiras da gramática, experientes e do naipe das mulheres fortes que estão ou já passaram pela educação pública de Marabá. De 27 anos para cá, conheci mais de uma centena dessa espécie de árvore.
Sueli Estela está reaprendendo a rebrotar sem o engenheiro Erasmo Paulino, companheiro dela em mais de 50 anos e três filhas. As quatro, há algumas semanas, cantaram uma jura de amor na “derradeirice” do marido e pai.
Como é que vou viver sem ele? Sueli me suspirou durante o velório num abraço. Não respondi porque vivo cheio de interrogações. Até quis me transformar numa girafa, ali, na casa de despedida. Colocá-la no pescoço longo, fazê-la sair do desassossego.
Finjo uma girafa quando não sei o que fazer para sarar alguma coisa em mim ou em alguém. Nem era para ser assim porque as pessoas bebem um lambedor feito de tempo e as coisas, numa hora, desentalam. Ou não.
Ou elas, precisadas de presença, se transformam em girafa e alcançam no olho da goiabeira a cajarana mais inchada para comer com sal. Vivo com a cabeça nas nuvens e por isso escrevo desvios.
Neila Fontenele, afastada da convivência da escola para cuidar de um câncer de mama, parece ter voltado com um saco cheio de cajás. Daqueles gordos na boca ou redemoinhando no liquidificador.
Distribuiu abraços, foi abraçada e, penso, não se cansou de responder que estava bem e mais meiguiceira com o corpo-jornada. Claro que teve medos, ainda tem, mas não está dando ousadia ao porvir. Curou-se.
Sueli e Neila me fizeram pensar em minha sogra, Mariam Eden, de dona Maria Assunção e do Pedro. Um dia, aleatoriamente, também levaram uma lufada de solavancos.
É assim, você está bem ou indo numa cartesianidade e, do nada, um diagnóstico te faz perder o chão. Você chora, claro. Mal diz tudo, duvida da fé, faz mil perguntas e passa a encarar o avesso também.
Minha amiga Virgínia está numa jornada contra a leucemia, é uma montanha cheia de ursos e você precisa aprender a conviver com eles. E vai conseguindo, aprendendo a respeitar a hibernação deles e até passa a lutar contra os desmatamentos para evitar a extinção de seres tão extraordinários.
Idiotas, semelhantes a mim, olham e questionam os inesperados da existência. Os destinos de uns e de outros… Quando a gente tem uma tribulação na vida, talvez seja preciso aprender a receber. É um senso besta, bem comum, mas é. E creio que Virgínia vai se curar com o rio, Itacaiunas ou Tocantins.
Sobre o cachorro, do título da crônica, conto noutra. De um dog pé-duro, calorento, que adotou o ar-condicionado do Banco do Brasil da Folha 32 porque não tem dinheiro para comprar ventilador para seu cantinho do lado de fora.
* O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.