Um calombo subiu no peito do meu pé. Olhei desconfiado. Apalpei-o. Massageei-o. Nada. Ele resistia. No dia seguinte, lá o bicho de novo. Crescendo, inchando, ameaçando. Tempos depois, para meu desespero, deste primeiro, nasceu um filhote. Era como se o maior tivesse transbordado para o lado, em um clone. Nem bolsas de gelo e nem esfregaços alteraram o rumo daquela proliferação de montículos. Eu olhava pra cada um, desolado. Tempos depois, do segundo nasceu um terceiro. Em fila, do maior para o menor. Como as três pirâmides de Gizé, no Egito. Reclamei em voz alta. Agora foi demais! Chega! Vocês vão se ver comigo.
Quando estive em São Paulo, 15 dias atrás, bati à porta de um ortopedista que descobri na lista da Unimed. O pé lavadinho e cheiroso, unhas feitas, sandália de dedo. Mas o médico, ao ouvir o meu sotaque paraense, puxou o assunto para o outro lado. Perguntou-me o que eu fazia da vida. De que cidade eu vinha. Como ia minha família. E até sobre política, porque conhecia a história de Helder Barbalho. Contou-me que viveu por aqui, em Belém, alguns anos. Que conheceu o Estado quase de ponta a ponta. Andou de barco nas águas de rios caudalosos. Eu também! Eu também! E fui esquecendo pouco a pouco do meu pé. Dos desgraciosos calombos que escutavam em silêncio.
Enganchados naquelas lembranças e andanças, deixamos frouxo o tempo. Já não éramos um ortopedista paulista e um paciente paraense numa consulta medica. Mas, sim, dois quaisquer, falando da vida. Rindo aos baldes. Baixe a máscara para eu conhecer você, disse o homem. E, seguindo o meu movimento, baixou a dele também, por breves segundos. Acho que, da surpresa desta intimidade de um cara a cara com o doutor, senti até nascer repentinamente mais um filhote de calombo no pé. Ah, o pé! Lembrou-se. Lembramos. Pois, “bote aqui, bote aqui o seu pezinho, bem juntinho, bem juntinho igual ao meu”.
Leia mais:Ah, como eu pensava, disse o olhar clínico. Quistos benignos. Saem com a ponta de um bisturi. Uma operaçãozinha de nada. Você dorme sob efeito da anestesia, com um “sossega leão”, e eu trabalho tranquilo. Na sequência, três semanas de convalescença, compressas e descanso no pé, nada de esforços. Me imaginei já imobilizado na cama, toda uma chatice por conta destes (agora) inofensivos calombos. Não é nada para agora, emendou. Quando quiser. Se quiser. Veja lá. Se calhar. Ah, pois! Pois, pois. Sai do consultório boiando na correnteza do Rio Itacaiunas. De volta Pirucaba.
Porque o doutor, sem saber, lembrou-me que não me reduzo aos quistos dos pés. Porque olhou primeiro o meu rosto, me reconheceu como igual na humanidade que temos, lançou os preâmbulos da consulta nas nossas memórias comuns. E só depois, aí sim, debruçou-se objetivamente sobre a queixa. Para ele, eu não era apenas um par de pés, na cadeira à frente. O homem dos quistos era um sujeito individual, subjetivo, inteiro, com uma história. E, se não me curou dos calombos, curou-me de outras experiências médicas do passado, onde me viram apenas como um ombro, uma veia, um cotovelo, um sinal na pele.
Pois, nos consultórios, falam-se muito de sintomas, doenças, tratamentos. Os queixosos voltam para a casa com as mãos cheias de prescrições e pedidos de exames, mas não recebem de alento uma gota de empatia. Já o meu ortopedista coração de ouro, no umbral da porta de saída, ainda me perguntou: “vai escrever sobre o que na próxima crônica?”. E eu respondi: sobre você. Mal sabia ele que os três quistos no peito do meu pé começavam a fervilhar uma outra história bem diferente, onde ele seria o personagem principal.
Dói? Só quando eu rio, doutor.
* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica às quintas-feiras