Correio de Carajás

Povo Akrãtikatêjê conquista vitória inédita na justiça e ganha fazenda de 3.600 hectares

Como se fosse a terra prometida dos hebreus, indígenas tomam posse de fazenda 30 anos após início de uma batalha judicial

O povo hebreu, na Bíblia, peregrinou pelo deserto 40 anos para conseguir entrar na Terra Prometida, denominada de Canaã. Na atualidade, o povo Gavião Akrãtikatêjê da Montanha, andou perto disso. Foram necessárias três décadas de batalha para que a Eletronorte cumprisse uma decisão judicial e reparasse um dano histórico ao retirar a comunidade indígena da região do Lago de Tucuruí, que foi inundado.

Na manhã desta quarta-feira, 19, os indígenas receberam a Fazenda Mabel, de 3.600 hectares, após ultimato da juíza Hind G. Kayath, titular da 2ª Vara da Justiça Federal de Belém. A referida propriedade faz divisas com os fundos da Terra Indígena Mãe Maria, com acesso pelo município de Nova Ipixuna.

Em um comboio com mais de 20 veículos, os indígenas foram à Fazenda Mabel para a formalização do Termo de Entrega e Ocupação. O antigo proprietário, Raimundo Bandeira Aguiar, fez a entrega de forma pacífica. Em verdade, disse que aguardava por este momento desde março do ano passado, mas que interposições judiciais procrastinaram o repasse aos indígenas.

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Ele contou, como quem quisesse chorar, que adquiriu a primeira parte da propriedade em 1999 e, desde então, havia comprado outras 25 pequenas propriedades na região, que encorparam a Fazenda Mabel. “Atuamos aqui com pecuária, aprendemos, sofremos, investimos e, às vezes. Essa fazenda era uma paixão para mim porque aqui construí muita coisa. Sei que a vocação de vocês é outra e tenho certeza que será bem utilizada”, destacou Bandeira.

Os hebreus tinham Moisés, que guiou seu povo, mas não entrou na terra prometida. O povo Akrãtikatêjê teve em Payaré seu líder máximo, que iniciou a peleja, mas também não está mais vivo para receber a nova terra.

Várias lideranças, de gerações diferentes, falaram durante uma cerimônia singela e histórica realizada embaixo de árvores na sede da fazenda. O documento de repasse da propriedade foi assinado pelo presidente da Associação Indígena Akrãtikatêjê, Nildivaldo da Costa Valdenilson e pela cacique Katia Silene da Costa Valdenilson, ambos filhos do lendário cacique Payaré, que iniciou, há 30 anos, a batalha para conseguir que a Eletronorte indenizasse seu povo por tê-los tangidos do local onde residiam.

Os líderes, entre os quais Zeca Gavião, sobrinho de Payaré, pediram unidade do povo Akrãtikatêjê para definirem que destinação darão para a nova terra. Todos exaltaram a luta de seus ancestrais e reconheceram que há interesses conflitantes. “Precisamos nos manter unidos daqui para frente”, clamou ele.

Zeca Gavião: ““Precisamos nos manter unidos daqui para frente”, clamou ele”

Os indígenas agradeceram o empenho do advogado Adebral Lima Favacho Junior, que os representou desde os tempos do patriarca Payaré. Os advogados de Raimundo Bandeira, presentes no ato, são Luiz Gonzaga Andrade Cavalcante e Marcos Alves de Melo. “A partir de agora, vocês, indígenas, terão toda responsabilidade pela manutenção desta nova propriedade, zelando por sua administração e segurança, com apoio direto da Funai, por ser o imóvel de propriedade da União Federal”, ressalvou Adebral.

Representante da Funai no ato, Hellen Fabiana Gomes Mendonça, coordenadora regional substituta do Baixo Tocantins, disse que a fundação desconhecia, até esta terça-feira, 18, a formalização da entrega da propriedade e que o órgão esperava um parecer oficial da SPU (Superintendência do Patrimônio da União) para poder atuar formalmente em favor do povo Akrãtikatêjê na nova propriedade.

 

“Nosso povo vive espalhado igual jabuti”, diz cacique Katia

A cacique Katia Silene, durante a cerimônia de recebimento da Fazenda Mabel, destacou a bravura de seu pai, Payaré, e outros líderes que lutaram pela compensação por parte da Eletronorte e disse que a decisão sobre o que será feito para que a nova conquista beneficie a todos que carregam o sobrenome Akrãtikatêjê será tomada com calma, em diálogo com todos da comunidade.

Kátia Silene: “Em nenhum momento meu pai se vendeu, mesmo quando a Eletronorte oferecia dinheiro ou até mesmo carro e casa”

“Em nenhum momento meu pai se vendeu, mesmo quando a Eletronorte oferecia dinheiro ou até mesmo carro e casa. Ele sabia da necessidade de crescimento do nosso povo. Esse é um momento de conquista, mas ao mesmo tempo de revolta, porque perdemos uma terra maior do que esta, além da nossa cultura e até mesmo a união do nosso próprio povo. Hoje, vivemos espalhado igual jabuti e confesso que estamos desunidos. Tudo por causa do impacto causado pela Eletronorte.

Kátia revelou que seu pai dizia que quando conquistassem a terra, fariam três dias de festa, inclusive com churrasco e culto. “Mas sei que estamos num período em que não podemos comemorar. Mas estamos felizes pela conquista histórica. Estou apenas angustiada por meu pai não ter recebido essa terra”.

Rõnõré Gavião, de 105 anos, era avó de Payaré e representante da velha guarda dos indígenas na cerimônia. Emocionada, ele relembrou momentos de luta de seu povo para ter acesso à terra que a Eletronorte foi obrigada judicialmente a adquirir aos indígenas. “Era uma luta dura. Nosso povo resistiu. Eu fico feliz de estar aqui neste momento tão importante para todos nós. A nova geração precisa valorizar essa conquista”, sintetizou.

A jovem Rotokwyi Akrãtikatêjê prega união em torno da nova terra

A jovem Rotokwyi Gavião Akrãtikatêjê, de apenas 25 anos, também destacou a importância que a nova terra tem para sua comunidade e apelou para que a união dos líderes de seu povo ocorra neste momento para decidir o que será feito com a terra que conquistaram. (Ulisses Pompeu)