Um gorro branco e uma capa vermelha se tornaram sinônimo da opressão contra as mulheres. O romance de 1985 da escritora Margaret Atwood The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia, em tradução livre) selou essa imagem em nossas almas com a descrição de uma distopia futurista em que as mulheres são forçadas a uma espécie de escravidão reprodutiva para gerar os filhos da elite – e usam esse uniforme para reforçar sua submissão.
A aia que vemos na maioria dessas imagens é Offred, a narradora da história. Como uma criada na República de Gilead, ela precisa se submeter a um ritual sexual de rotina com seu comandante, Fred. (Seu nome deriva do dele, “of Fred” – “de Fred”). Ela é uma das mulheres ainda férteis incumbidas com o dever da reprodução depois que muitas das mulheres da classe dominante se tornaram inférteis como resultado de ingestão de toxinas do meio ambiente. Antes do golpe que derrubou o governo americano para instaurar o novo estado teocrático de Gilead, ela era casada com um homem chamado Luke e tinha uma filha pequena.
Atwood concebeu o romance como uma “ficção especulativa”, imaginando um futuro que poderia acontecer sem nenhum avanço tecnológico em relação ao presente. Em outras palavras, “a ficção científica tem monstros e naves espaciais, a ficção especulativa poderia acontecer de verdade”, disse ela. Todos os aspectos do livro foram inspirados em acontecimentos sociais e políticos do começo dos anos 1980, quando ela o escreveu.
Leia mais:Por causa disso, o romance de Atwood tem um jeito assustador de sempre sentir o momento, desde sua primeira publicação até todas as outras edições que se seguiram. Quando foi publicado pela primeira vez em 1985, Atwood chegou a levar recortes de jornal às entrevistas que dava sobre o livro para mostrar como sua trama tinha antecedentes da vida real. O livro refletiu a aderência americana ao conservadorismo com a eleição de Ronald Reagan como presidente, assim como o crescente aumento da direita cristã e suas organizações lobistas poderosas, como Maioridade Moral, Foco na Família e a Coalizão Cristã – sem mencionar o aumento do televangelismo (o uso da televisão para transmitir a fé cristã). A personagem de Serena Joy em O Conto da Aia é uma ex-televangelista que sugeriu políticas teocráticas que agora a obrigam, assim como todas as mulheres, a uma vida dedicada inteiramente ao lar. “Ela não faz mais discursos. Ela ficou sem fala. Ela fica em casa, mas isso não parece combinar com ela. Quão furiosa ela deve estar por ter perdido a palavra”.
Apesar de Atwood ser canadense e da história se passar mais tarde – Joyce Carol Oates, do The New York Review of Books, especulou que o futuro distópico do livro seria por volta de 2005 – a escritora disse se referir aos Estados Unidos dos anos 1980, com o crescente poder político de cristãos fundamentalistas, preocupações ambientais e ataques contra os direitos reprodutivos das mulheres. A reação contra o aborto nos Estados Unidos na época incluía um vídeo amplamente divulgado chamado “O Grito Silencioso”, com explosões e incêndios contra clínicas de aborto e a sugestão de uma lei que daria direitos civis aos fetos. O governo de Reagan também rompeu com políticas de longa data e disse que o governo americano só financiaria grupos internacionais de saúde da mulher que promovessem planejamento familiar ‘natural’ – ou seja, abstinência – em países em desenvolvimento. Como afirmou a professora de inglês Shirley Neuman em um artigo publicado em 2006 em uma publicação da Universidade de Toronto, “Offred é um produto ficcional do feminismo dos anos 1970 e ela se encontra em uma situação que é uma percepção ficcional do retrocesso contra os direitos das mulheres que ganhou força no começo dos anos 1980”.
Nem todo mundo no governo americano na época era contra o apartheid na África do Sul: o futuro vice-presidente Dick Cheney era contra a libertação de Nelson Mandela da prisão, enquanto o senador John McCain votou contra a imposição de sanções contra o governo sul-africano como forma de pressionar pelo fim do apartheid. No livro, Atwood faz uma alusão aos bantustões (áreas exclusivas para um grupo racial ou étnico) da era apartheid da África do Sul dizendo que os americanos negros foram segregados em “National Homelands” (“pátrias nacionais”) no meio-oeste do país.
Puritanismo e políticas públicas
A obra The Handmaid’s Tale sempre é discutida como uma espécie de alerta feminista e também foi interpretada como uma crítica ao sexismo no livro da Gênese. Mas algumas descrições de Atwood não eram uma mera especulação sobre o resultado final de uma tomada de poder por parte da direita religiosa nos Estados Unidos, mas eram baseadas em coisas que já estavam acontecendo em outros lugares. Atwood diz ter se inspirado em parte na tentativa de Nicolai Ceausescu de aumentar as taxas de natalidade na Romênia – o que o levou a policiar mulheres grávidas e a proibir o aborto e os anticoncepcionais – e também nos assassinatos de dissidentes pelo regime de Ferdinando Marcos nas FIlipinas. A ideia de “dar” os filhos de pessoas de classes mais baixas à elite veio da Argentina, onde mais de 500 crianças ficaram ‘desaparecidas’ após o golpe militar de 1976 e acabaram nas mãos de líderes do governo.
Mas o puritanismo americano é sem dúvidas a referência central da obra de Atwood – e ela fez conexões entre o que estava acontecendo nos EUA nos anos 1980 e os colonos puritanos da New England do século 17. “As nações nunca constroem formas radicais de governo em bases que não estão já lá”, escreveu Atwood para o jornal britânico The Guardian em 2012.
“Então… A União Soviética substituiu a temida polícia secreta imperial com uma polícia secreta ainda mais temida, e assim por diante. A base profunda dos Estados Unidos – assim pensei – não eram as estruturas de república relativamente recentes e do Iluminismo do século 18, com a conversa sobre igualdade e a separação de igreja e estado, mas a dura teocracia da puritana New England do século 17, com seu preconceito acentuado contra as mulheres que precisa apenas da oportunidade em um período de caos social para se reafirmar”. O próprio Reagan falou sobre seu sonho de tornar os Estados Unidos ‘uma cidade brilhante em uma colina’, repetindo o termo que os puritanos tinham para sua colônia na Baía de Massachusetts.
Relevante para sempre?
O livro de Atwood foi um sucesso entre críticos e leitores, mas a adaptação para o cinema quatro anos mais tarde foi um fracasso. As dificuldades da produção mostraram quão relevante era a obra: a maioria dos estúdios não considerariam fazer um filme que era tão pesadamente feminino e a maioria das grandes atrizes tinham medo do radicalismo do material. A versão de 1990 do filme com as estrelas Natasha Richardson e Faye Dunaway é em alguns momentos sexista e, em outros, sério. O diretor alemão Volker Schlöndorff a planejou como um thriller sexual, uma interpretação obviamente errada do material original. Richardson como Offred não apenas perdeu sua agência – o roteiro evitou a locução, perdendo o senso de urgência do livro – e ela pareceu mais objetificada do que nunca. As críticas não foram boas e o filme também foi mal nas bilheterias, recuperando apenas 5 de seu budget de U$ 13 milhões (R$47 milhões).
Desde então, O Conto da Aia inspirou uma série de adaptações mais simples. Adaptações de teatro foram feitas na Universidade de Tufts nos EUA e em uma tour no Reino Unido. Também foi feita uma ópera por Poul Ruders que estreou em Copenhagen em 2000 e foi interpretada pela Ópera Nacional Inglesa em Londres em 2013 e pela Cia Canadense de Ópera em 2004-2005. O Balé Real de Winnipeg também fez sua interpretação da história em 2013.
Apenas no final do ano passado, a série The Handmaid’s Tale estreou no Hulu, como uma adaptação para série televisiva, e se tornou uma referência cultural popular. Os produtores da série mudaram detalhes para trazer a série para o presente, incluindo detalhes como Uber, Tinder, cappuccinos e o site Craiglist nas lembranças de Offred de sua vida antes de se tornar uma aia. Mas a série passou uma sensação mais assustadora por causa da enorme mudança no rumo da política americana com a eleição de Donald Trump, que entrou no cargo apenas três meses antes da estreia da série. De repente, os pontos críticos do livro e da série pareceram mais possíveis do que nunca: um governo declarando uma lei marcial após um ataque de extremistas islâmicos, um regime que sistematicamente elimina pessoas homossexuais, uma sociedade que prioriza a procriação (e subjugação das mulheres) sobre qualquer outra coisa.
“Quão assustadoramente premonitório é o fato de que a República de Gilead foi estabelecida em um golpe quando fundamentalistas cristãos, enojados por uma sociedade excessivamente liberal, sem um deus e promíscua, assassinaram o presidente, metralharam o congresso, declaram um estado nacional de emergência e colocaram a culpa nos ‘fanáticos islâmicos'”, escreveu Joyce Carol Oates em uma retrospectiva de Handmaid em 2006. “Assim como o 1984 de Orwell, a república consolida sua força mantendo uma guerra contínua contra os demonizados ‘inimigos'”.
Isso tudo se articulou com o medo das tendências autoritárias de Trump e as posições homofóbicas e antiaborto do seu vice. Até as roupas de Handmaid se tornaram comuns em protestos contra leis que limitam a liberdade reprodutiva das mulheres. A Marcha das Mulheres, que se opôs à posse de Trump como presidente, assemelhou-se às cenas de flashbacks de mulheres protestando nas ruas contra a perda de seus direitos.
Agora que The Handmaid’s Tale está de volta em sua segunda temporada, a obra parece mais vital do que nunca, ainda que o terreno cultural para as mulheres tenha mudado muito. Desde a última temporada, o movimento #metoo aconteceu e a história de Offred segue com ele. Sem dar spoilers da segunda temporada, que vai, de alguma maneira, além da narrativa de Atwood no romance, Offred agora está tentando achar métodos de recuperar seu próprio poder no regime opressivo e aproveitando esses momentos de maneiras satisfatórias – não muito diferente das mulheres encontrando poder ao contar suas próprias histórias nos movimentos #metoo e #timesup. É claro que isso não é uma coincidência – os produtores da série estavam cientes das mudanças no movimento das mulheres conforme construíram essa temporada.
Desde o lançamento do livro, a frase mais citada de The Handmaid’s Tale é a que foi talhada na parede do closet de Offred presumidamente por sua antecessora: Nolite te bastardes carborundorum. Não deixe os bastardos te oprimir. Essa frase se tornou um grito de protesto e muitas mulheres tatuaram a frase em seus corpos. “Foliões se vestem de Handmaids no Halloween e também para protestar em marchas – esses dois usos da fantasia refletem sua duplicidade”, escreveu Atwood para o Guardian. “É entretenimento ou uma professia política aterrorizante? Pode ser ambos? Eu não antecipei nada disso quando estava escrevendo o livro”.
As mensagens e a iconografia de The Handmaid’s Tale podem parecer mais aplicáveis do que nunca hoje. Mas parece que sempre falamos isso sobre a história de Atwood. Será que vamos dizer o mesmo se outra adaptação aparecer, daqui a três décadas? (Fonte:BBC)