Correio de Carajás

Perguntas que eu faria para o doutor Veloso

Se tivesse vivo, Dr. Veloso, o Médico dos Pobres, estaria com 89 anos de idade. Bem cansado, certamente, pelo tanto que trabalhou na vida. Mas, mesmo assim, eu arriscaria uma entrevista com ele para uma avaliação sobre medicina. Deixaria os assuntos política e gestão de negócios de saúde de lado.

Me permitiria conversar sobre o que o motivou a sair de Floriano, no Piauí, para cursar medicina em Belém. E mais: por que escolheu como primeiro campo de trabalho a minúscula cidade de Breves, na Ilha do Marajó.

Satisfeito ou não com as respostas, eu quereria saber quem o convidou para vir a Marabá, uma cidade ainda sem perspectiva de crescimento acelerado porque a existência de minério na região de Serra dos Carajás não havia sido descoberta.

Leia mais:

Em minha entrevista hipotética não poderia faltar um assunto que virou mito popular: é verdade que o senhor atendia pacientes à noite, saindo de casa de bicicleta, percorrendo as ruas escuras, às vezes sem ganhar um centavo por isso?

Mas que médico sem noção? Enquanto, atualmente, muitos profissionais de medicina batem o pé e não saem de casa para um plantão no HMM se o valor que pagam não for suficiente para engordar suas contas bancárias em pouco tempo.

Ora, doutor Veloso, como assim, abrir mão de honorários médicos? Que o senhor cobrasse uma galinha, uma piabanha fresca, o que fosse, pois aqueles pobres precisavam entender, mesmo naquela época, que quem trabalha de graça é relógio.

“Ah, doutor”, eu perguntaria… está sabendo de um bando de jovens que vão cursar medicina na Bolívia ou outro País da América do Sul, fazem um curso com qualidade questionável e voltam sem conseguir validar seus diplomas no Brasil? Mesmo assim, passam a atender pacientes aqui na região, de forma clandestina.

Talvez, espantado, Veloso dissesse que isso não pode ser verdade, que os moradores de Marabá e região não devessem ficar nas mãos de alguém com formação tão precária. Que deveria procurar cursar medicina aqui no Brasil, estudar as doenças tropicais.

Eu também informaria ao médico, que certamente estaria aposentado, que muitos médicos de seu tempo se tornaram fazendeiros e a medicina virou um bico. Doutor Veloso repreenderia essa prática, certamente, e me perguntaria os nomes. Mas eu deveria não decliná-los, embora a língua estivesse coçando.

O Médico dos Pobres, falecido há 20 anos, ficaria escandalizado se eu lhe dissesse que um médico foi preso dias atrás, após um paciente morrer em seu consultório durante um procedimento e que as autoridades estavam investigando a legalidade de seu diploma, sob suspeita de que não teria cursado medicina integralmente. O que o senhor recomendaria neste caso, doutor?

Também perguntaria ao homem que fez mais de 20.000 partos só em Marabá, se não ficaria triste em saber que o primeiro hospital em que ele trabalhou aqui na terrinha, abriga médicos que fogem do plantão, enquanto pacientes reclamam de falta de atendimento em um momento tão sensível, que é o parto de seus filhos.

E se o assunto esbarrasse nas unidades básicas de saúde, os populares postos de saúde. Eu ousaria perguntar ao velhinho se não acharia tão injusto o médico ganhar para trabalhar por quatro horas, mas só ficar no consultório uma, duas horas, enquanto atendem só 20 pacientes nesse período e vão embora para plantão em outro local no resto do período.

Eu precisaria perguntar, pra finalizar a entrevista, se Doutor Veloso não se sentia incomodado com este cenário de falta de respeito ao Juramento de Hipócrates e tiraria seu jaleco da aposentadoria e voltaria a atender pacientes, mesmo que não fosse em sua velha e enferrujada bicicleta.

 

* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira