A memória, vira e mexe, puxa a gente pra lembrar desse ou daquele amigo da infância. Da menina que eu achava a mais bonita da rua, quis um dia beijar no escode esconde, e nunca tive coragem de me declarar. Besteira levar um fora, receber um “não” e viver suspirando da janela ou no olho da goiabeira.
E porque minha meninice foi uma quermesse, você imagina que a de todo mundo foi um “ventin” nos olhos, um pão sovado com margarina mergulhado no café… E nem sempre é assim.
Quinta passada, meu velho carro, cheio de histórias, forçou-me a fazer uma parada de aperreio porque um mecânico desonesto fez de conta que ajustou o ventilador que esfria o radiador e o motor.
Leia mais:Quando o carro fumaçou na chuva e as pessoas se desesperaram achando que o Fiat ia pegar fogo, resolvi estacioná-lo ao lado de onde funcionou o Jornal CORREIO DO TOCANTINS por quase três décadas, numa diagonal que dá acesso à Estação Rodoviária, Nova Marabá.
Puto, mas nem tanto (tive orgulho do meu sangue desacelerado), abri o capô e esperei o radiador tomar sereno. Fiquei por ali, um olho no carro, outro na rua e os dois no prédio saudoso do CORREIO, onde também fui feliz como foca. Hoje, calculo, depois do próprio Mascarenhas, ninguém escreveu mais páginas e reportagens do que eu. Claro, quantidade não é qualidade, mas tenho números, pelo menos.
E enquanto eu olhava o motor do carro tentando entender direito o que ocorrera, eis que se encosta na situação o flanelinha, dono do meio fio, e começa a puxar conversa para marcar o território e, depois, cobrar o pedágio.
No meio das histórias vãs, solto que trabalhei na Redação de Mascarenhas Carvalho. É quando realmente começa esta narrativa. Enquanto eu catava milho na Olivetti, ele e um bando de pivetes – dez para ser exato – perambulavam e se aninhavam na esquina do jornal cheirando cola.
Lembra de mim? Provoca minha memória… Eu, o Cãozinho, o Daniel, Marcelo, Bebeto, Virgínia, Hermínio, Estênio, Leonardo e o Seriguela?
A gente, tudo menor, ”cherava cola” na esquina aqui do jornal e se virava por aqui. Tinha até umas barracas de comida que as mulheres eram gente boa e de vez em quando davam alguma coisa pra gente?
Vou lembrando. E alguns deles foram até personagens de matérias sobre infância desterrada e política ineficiente de governo pra criança e blá-blá-blá…
E o que foi feito do destino dos outros? Dos dez, “escapou eu”: Carlos Eduardo e o Leonardo.
O Cãozinho deixou a cola e papocou de overdose de crack. O Daniel, Marcelo, Bebeto e o Seriguela morreram matados de bala. “Eram ladrão” e deviam aos traficantes da Folha 33 e da 28 (pertinho da feira livre daquele bairro).
O Estênio, irmão do Hermínio, levou uma facada no pescoço – dada pelo próprio Hermínio – e se foi sem acreditar. Depois, exterminaram o Hermínio. Bala também.
O Leonardo, após muita esquina e várias passagens pelo CIAM, se entregou a Jesus e virou evangélico. Parece até que casou. Eu tô, aqui, pastorando carro. Mas gosto mesmo é de lavar pra ganhar mais.
E a Virgínia? Faltou a Virgínia – única menina da esquina. Ah! Quando a gente vinha da Folha 33 pra Rodoviária, pegava bochecha numa caçamba. Um dia, ela caiu e não gosto nem de lembrar da cabeça dela na roda…
Fiquei por ali, à espera do radiador esfriar, colocar água e ir direto para a oficina. E ele seguiu debulhando memória sobre a infância dele que nem sei como existiu a minha.
Por que não me mataram? Um dia, vieram do Projeto Semear e do Atleta Ano 2000. Não fui pras Olimpíadas de Sidney, mas virei jardineiro… E já escapei 34 anos.
Claro, ainda há muitos jovens na mesma situação em ruas da Velha Marabá, que se tornou um espaço de zumbis à noite, quando perambulam pelas ruas atrás de comida, de drogas ou até de pequenos delitos para comprar as duas.
Mas eu espero que a história do jardineiro possa se repetir na vida de muitos outros, que não sumam pelo papoco de uma pistola.
* O autor é jornalista do CORREIO há 28 anos e escreve crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.