Correio de Carajás

OURIÇO CHEIO: Uma tarde de histórias na curva do Inflamável

“Poucos lugares como aquele em Marabá têm tantas histórias para contar. De vera, eu, minha filha e esposa não vimos o tempo passar na mesa da cabana ou na cartografia imagética que a velha casa exala”.

No último domingo, levei esposa e filha para um almoço (caro) num restaurante badalado às margens do Rio Tocantins. Ainda não tinha ido lá com aquela configuração. Tenho a ilusão de ser um conhecedor da cidade. De cabo a rabo… Ilusão.

Porque aquele ponto nunca foi tanto a minha praia, embora já tenha passado ali de helicóptero, avião, voadeira, rabeta…mas nunca tinha sentado na casa e curtido a paisagem. Isso não…

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Deram nome ao lugar de Cabana do Sol. Servem peixe, carne e galinha caipira. Comida gostosa mesmo, mas cara, num vou mentir. Mas a vista da Praia do Tucunaré e da Velha Marabá, por ângulo invertido, podem ajudar a pagar metade da despesa. O ambiente é, de certa forma, rústico ainda, mas o atendimento é razoavelmente bom.

Mas a crônica de hoje não é exatamente para falar bem ou mal dos pratos e do ambiente. Está focado nas histórias dali, uma parte envolta em magia. Na meia hora em que aguardamos o prato chegar, fui contando à minha filha Brenda um pouco do que ocorreu naquele lugar.

Era chamado, na primeira metade do século passado, de Inflamável. O nome foi dado ao local porque ali se depositava combustível para abastecer motores de energia de várias cidades da região. Também dali, os construtores de casas ou comércio extraiam cal para construção civil. Num tempo em que não havia cimento, ou era caro e raro, era essa argamassa retirada da pedreira que havia no local que ergueu muitas casas na Velha Marabá.

Em frente ao Inflamável há um poção (bem fundo) no Rio Tocantins, onde os pescadores criaram uma lenda que amedrontava crianças e adultos que passaram pelo local. E da famosa Boiuna.

Contavam que sua primeira morada foi na cachoeira existente no Rio Itacaíunas, conhecida por Pirucaba, onde uma menina foi jogada ao nascer e tornou-se encantada, transformando-se numa cobra gigante. Posteriormente, mudou-se para o poção do inflamável.

A população ribeirinha mais antiga de Marabá conta que a Boiuna costumava aparecer nos sonhos dos pescadores na forma de uma bela moça, e esta contava sua triste história de encantamento, que havia sido jogada no rio ao nascer e pedia para ser desencantada, prometendo fortuna ao seu herói. Para desencantá-la, era necessário despejar leite materno em sua boca, bem como cortar um pedaço do seu rabo e assim o encantamento terminaria.

Vários pescadores prometeram desencantá-la, e para isso marcavam o horário e o dia para realizarem tal façanha. Entretanto, no dia agendado iam para o rio cheios de coragem e vontade de ficarem ricos, mas quando viam o banzeiro enorme que a Boiuna fazia, começavam a ficar com medo, e quando avistavam a imensa cobra corriam com tanto medo que nem se lembravam de que, ao desencantarem a Boiuna, se tornariam ricos para o resto de suas vidas.

Por isso ela nunca foi desencantada e vive a causar medo e a virar as canoas dos pescadores que passam em seu caminho. Contam ainda que o pedido de desencantamento só pode ser feito de sete em sete anos.

Mas contei à Brenda, também, de como o local já havia sido bordel na década de 1990, para onde os ricões de Marabá iam com suas lanchas e ficavam à vontade, com garotas que trabalhavam na casa. Falei de um outro estágio, quando o espaço foi alugado para um ricaço por vários anos, até ficar meio abandonado e agora ressurgir como restaurante badalado de vista primorosa.

Poucos lugares como aquele em Marabá têm tantas histórias para contar. De vera, eu, minha filha e esposa não vimos o tempo passar na mesa da cabana ou na cartografia imagética que a velha casa exala.

Inflamável ou Cabana do Sol, talvez seja a ressurgência da paixão que nos toma, repentina, pela Cidade que ignoramos olhá-la com namoro e enchê-la de beijos de apaixonados. (Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira