Restaram as duas irmãs na enorme casa vazia na Folha 32. Alguns irmãos ganharam o mundo, se vivos não dão mais notícias. Outros se casaram, quase nunca aparecem. Apenas os pais ainda lhes fazem companhia: nos porta-retratos na parede da sala de visitas.
Ah, morar nas Folhas 26 e 32 era o desejo de ricos e pobres das décadas de 1980 e 1990. Era o destino dos endinheirados, fosse de Serra Pelada, comerciantes, políticos ou recém-chegados para trabalhar numa das muitas empresas que se alojaram por aqui.
As irmãs passam dias sem se ver: uma cuida das plantas, aguando as roseiras, resmungando preces sem fim no fundo do quintal; a outra remexe as cartas e fotografias na gaveta da cômoda, na camarinha quase escura, cantarola às vezes uma musiquinha fora de moda. Às vezes passam uma pela outra sem notar, cabeças baixas, invisíveis que estão ficando.
Leia mais:Aos domingos, não perdem a primeira missa no Santuário de Nazaré, na Folha 16, onde ficam, desde meninas, do lado esquerdo do altar, o lugar preferido da mãe e do pai. O padre, já outro, lhes estende as primeiras hóstias, antes que se forme a fila. Então voltam arrumadinhas para casa, depois de circularem um pouco entre os bancos da praça, procurando em vão alguém conhecido: vezes se alegram no engano da vista, quando recebem algum aceno de volta. Mas são raros.
Na janela, já se cansaram de esperar pelos vendedores de fruta, de peixe, de bugigangas, até juram ter visto um deles quase dobrando a esquina da desejável Folha 32: mas há muito desapareceram – mesmo que os pregões deles continuem teimosamente a ressoar em seus ouvidos. Quando muito a sobrinha traz da feira da Folha 28, uma piabanha ou curimatá gorda, sob mil recomendações sobre as espinhas.
De casa, as duas irmãs só arredarão os pés dali a sete dias, com as mesmas roupas, as mesmíssimas flores – passos miúdos rumo ao mesmíssimo Santuário de Nazaré. Na rua onde moram algumas residências com vizinhos que não se importam com ninguém, que não saem de suas casas nem para fechar o portão quando chegam, porque o controle remoto não permite. Nos quarteirões ali perto, nem mais um vizinho, porque os negócios foram tomando de conta da Folha 32: um laboratório, uma pizzaria, loja para militares, mas nenhum restaurante por perto.
Ao redor da casa grande das irmãs sem-nome há casas, há prédio, há barulho, há jardins e calçadas vazias. Mas não existem relacionamentos. Elas não querem, se evitam. Os espaços da velha casa lhes sustentam, apesar de quererem mais.
Mas elas resistem ao tempo. Resmungam antigas conversas como se houvesse ainda alguém para escutá-las. Às vezes uma gargalhada destoa do silêncio, assustando os passarinhos. Na penumbra dos muitos quartos assovia um ventinho vindo lá do quintal, não raro trazendo uma canção fanhosa de outros tempos, que elas acompanham pelo menos nos refrãos mais conhecidos.
E quem passa – ainda hoje pela calçada, apurando bem o ouvido – escuta nem que seja um mísero soluço. Insistente feito grilo. Desafiando o barulho dos carros.
Mesmo que a casa já esteja fechada há mais de uma década. E todas as portas e janelas bem lacradas com tijolos.
Dizem que um empresário do ramo de mineração conseguiu promessa de venda de um dos irmãos. Depois de longa espera, contrataram um advogado para correr o inventário.
* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira