O nó da existência, talvez, é que criamos as crianças, simplesmente, para serem “adultos” e não seres vivos de um mundo em desconstrução. Na maioria das famílias há um mascarado de “adulterações” e a vida desses “adultos” se torna brutal.
O óbvio… o adulto, provavelmente, é uma criança que passou por uma lida de rudeza no “crescer”. É a mais rala e, ao mesmo tempo, a mais erudita das definições que aprendi no meio da rua, convivendo entre o Granito e o Canto Verde, na Velha Marabá.
O locus fabulatório da minha infância onde tive aulas imperdíveis sobre o senso comum e, depois das rachas de futebol, discussão arquetípica sobre o riso proibido em “O nome da rosa” e a moral salvatória em “Marcelino pão e vinho”, assistido no saudoso Cine Marrocos. É doido, né?
Leia mais:Ora, ora, leve tempo para desenxergar o Minotauro feito uma criatura medonha e que, se saísse da prisão labiríntica imposta por Minos, comeria a humanidade.
A aberração “bovi-humana” nem era assim uma quimera tal e qual continha Minos, o rei de Creta que “levou chifre” da esposa Pasífae com um touro dado por Poseidon.
Nas minhas imoralidades e intertextualidades cognitivas, combatidas durante as aulas de religião nas salas do Pequeno Príncipe, tinha o desejo reprimido de que meu corpo fosse aquela metade avantajada de homem e uma cabeçorra taurina sedutora.
Imaginava-me bufando pelas narinas, musculoso em rios de suadeira e gozo! Seria finalmente enxergado na rua e na escola por garotas e meninos. Quando matavam o Minotauro, toda vez que ele ou assistia a história, a hipocrisia se materializava em casa ou no bairro.
Sim, porque nunca testemunhei nenhum macho “adúltero” ser punido com o terror de banir um filho Minotauro. Contrário, vi muitos vizinhos, tios e conhecidos trazendo em crias paridas fora do matrimônio (indissolúvel) para as esposas cuidarem. E nenhum pio!
Quando meu amigo Fautino, da Folha 20, fez a primeira comunhão, adorei um dos meninos gritar que não gostava de carne nem de sangue e, por isso, não comeria o “corpo” de Cristo.
Ele era considerado um garoto cheio de nuvens e manés-magros na cabeça, diferente de nós que nos ajoelhávamos e repetíamos algo “divino”. Ainda a mesma ladainha da primeira missa rezada durante as invasões europeias por aqui. Enquanto isso, a hóstia sumia na saliva. Puro a chegadinho sem açúcar.
Talvez a maioria dos pais, mães, avós, avós, tios, o padre, o pastor e o professor fizeram tudo na melhor das “intenções” (nem todos), mas acabamos recriando escolas de preconceitos. Parece exagero, revisionismo histórico melhor, mas não é.
Há crianças que foram adulteradas pelo racismo, pela homofobia e pela misoginia. Gente que defende uma posse de armas e o extermínio de “vagabundos”. Há uma idiota que mal sabe sobre o cristianismo (e Jesus) e pressaia uma bandeira de Israel porque os palestinos precisam deixar de existir.
Só por outro lado fiz as contas de que foram 388 anos de escravização no Brasil. Foram quase quatro séculos de sequestros, torturas, estupros e assassinatos. Tudo legitimado pela Igreja e pelo Estado, por causa da pele negra do outro e da avareza de ter currais humanos de pretos e indígenas.
Difícil não criar filhos racistas com uma herança nefasta assim e a perpetuação de privilégios entre famílias de “berço”. Um negócio sem fim.
Quase impossível criar meninos e meninas que não derrubem árvores se, todo ano, comemoramos o Festejo Junino com pau de sebo que tiramos das nossas poucas florestas para os mais hábeis subirem e descerem para mostrar sua destreza pueril. Se celebramos a mesma festa com uma fogueira de madeira que teimamos em queda das matas.
Criança é meio o planeta tentando se recriar novamente – o pleonasmo é intencional. É outra chance dada à gentileza, ao abraço, à compaixão pelo recomeço.
Meninas e meninos são possibilidades, mais uma vez, do mundo reflorestar na rebrota.
* O autor é jornalista do CORREIO há 28 anos e publicação crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas na coluna não refletem, necessariamente nesta, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.