Corria a primeira metade dos anos 1970, e uma terrível ditadura militar varria o País, mas nós – reles meninos da Velha Marabá, – ignorávamos tudo isso, sequer desconfiávamos que em hotéis ali pertinho, os participantes da Guerrilha do Araguaia, como Osvaldão, se hospedavam discretamente para depois resistir bravamente junto com outros colegas. Queríamos mesmo era correr estradas, varrer caminhos, se esconder em quintais, quebrar bubuia no Itacaiunas, comer azedinha no Pirucaba e caçar passarinhos…
Sabendo das traquinagens, minha mãe insistia vigilante, as manhãs no colégio, as tarefas de cuidar do uniforme quando chegasse, limpar o quintal, aguar plantas e, sem folga, as horas das lições de casa, sagradas e severamente vigiadas por minhas irmãs. Mas tínhamos as possibilidades das fugas, que se renovavam em mil artimanhas e criatividades: mentíamos muito para lograr êxitos.
E dessas fugas estão quase todas nossas lembranças de infância, raras são as memórias guardadas das “horas oficiais” de bons meninos, porém os momentos forjados a fórceps ficaram grudados na mente.
Leia mais:Só uma obrigação me dava interesseiro prazer: nos dias de feira de domingo, meu pai me levava para vigiar o barco carregado de castanha-do-pará quando ele retornava de uma viagem de 15 dias Rio Itacaiunas acima. Era para evitar que alguém mexesse na preciosa amêndoa.
Enquanto ele ia para a oficina do Mestre Leobaldo, eu e meus primos aproveitávamos para tomar banho, pulando do barco e comendo castanha. Quando ele voltava, duas horas depois, me dava sempre umas moedinhas como “pagamento”. Eu guardava tudo. E quando tinha o suficiente corria para comprar o que desse o apurado: fosse bola, calção de jogador, canivete… Mas um dia descobri uma banca que vendia pequenos espelhos redondos, com fundos que me causavam êxtase: escudos dos clubes de futebol e mulheres peladas.
Passei a andar sempre com um desses espelhinhos mágicos no bolso, de dia me deslumbrava o mundo através de seus muitos reflexos e ângulos invertidos, pela primeira vez na vida conhecia o outro lado das coisas comuns, usava mais a imaginação que o real das figuras – que deixava para as horas noturnas, destas vezes usando o inverso do vidro, viajava frenético nas imagens de times e garotas.
Entretanto, logo passei a fugir dos espelhos: num começo de tarde uma leva de meninos corria em direção à cadeia pública atrás do Cemitério São Miguel, na Velha Marabá, ligeiro atalhei a dianteira pelo velho corredor estreito ao lado do muro do cemitério: cheguei ao pelotão de curiosos que formava fila na frente do presídio – uns entravam com olhos arregalados de curiosidades e outros saiam com os olhos arregalados de medos.
Chegou minha vez de pegar o pequeno espelho quebrado e tentar, nervoso, localizar o preso que se enforcara com o punho da rede no canto mais escondido à esquerda das grossas grades da cela.
O que vi ou o que imaginei ter visto na imagem partida e embaçada daquele espelho trêmulo ainda hoje nem desconfio – mais tarde passei temeroso, e só olhei da janela, no velório na casa de dona Arimateia, parenta distante do caçador injustamente acusado de roubo, que não suportou o peso da vergonha e se jogou de joelho naquele abismo no canto mais escuro do desespero.
Sei que nunca mais possuí espelhos, enterrei todos (mas antes os quebrei, até esqueci-me de salvar o papel plastificado das figuras de trás) debaixo do mulungu no fundo do quintal: ainda hoje tenho medo de espelhos quebrados… E do que possa ver de estranho em seus fundos partidos!
* O autor é jornalista há 26 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.