Correio de Carajás

O pão que Suzi amassou para reerguer a própria vida

Por: Ulisses Pompeu

Acordar às três da manhã não é poesia, é sobrevivência. É rotina de quem aprendeu cedo demais que o mundo não espera ninguém. Suzi sabe disso na pele. Há cinco anos, quando voltou para Marabá com o filho pequeno e uma coragem enorme dentro do peito, já não tinha luxo de escolha, tinha apenas a vida, essa mesma que às vezes esfarela como massa mal sovada, mas que, sob as mãos certas, ganha forma, cheiro e sentido.

Mas não foi sempre assim.

Suzi nasceu em Marabá, menina ainda quando conheceu Leonildo Castro, um rapaz de 21 anos que parecia ter o mapa de um futuro próspero nos olhos. Casaram-se, foram morar em São Geraldo do Araguaia e, por um tempo, a vida até parecia seguir uma receita simples, ele montou uma padaria, distribuía pães nos comércios da cidade, e ela conseguiu trabalho como merendeira numa escola. Aos 19, tornou-se mãe. Mãe inteira, dessas que carregam o mundo e ainda sorriem para o filho.

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Só que a vida, inquieta como sempre, resolveu reinventar o roteiro. Leonildo se apaixonou por outra mulher e fugiu para Xambioá, levando consigo as máquinas da padaria, o negócio e as promessas. Deixou para trás Suzi, um bebê nos braços e um silêncio enorme dentro de casa.

Ela poderia ter aceitado o abandono, mas escolheu o caminho mais difícil, procurou a Justiça. Lutou por pensão, por dignidade, por respeito. Ganhou o direito sobre todas as máquinas, justo, mas irônico, porque Suzi não sabia fazer pão.

Não sabia ainda…

Com a mesma obstinação de quem não aceita a derrota, abriu o YouTube. Assistiu a dezenas de vídeos, estudou, errou, recomeçou, queimou massa, acendeu esperança. E logo a sala da casa virou padaria improvisada. O cheiro do pão quente começou a ocupar o espaço onde antes morava a tristeza.

Cinco anos atrás, decidiu voltar para Marabá e recomeçar outra vez, agora no São Miguel da Conquista, onde alugou uma casa simples, dessas que têm rachaduras nas paredes, mas espaço de sobra para sonhos. A clientela foi surgindo devagarinho, no varejo, no atacado, até ganhar corpo, forma e fôlego. Suzi trazia a força e a paciência. O bairro trazia o reconhecimento.

A mãe dela, ainda no interior do Maranhão, viu de longe o esforço da filha e decidiu somar. Comprou uma casa na mesma rua, um gesto que é quase abraço permanente. Hoje cuida da casa, do neto, do ritmo da vida, enquanto Suzi enfrenta jornadas que começariam a assustar qualquer trabalhador urbano. Dorme às nove da noite, acorda às três da madrugada, prepara massa, vigia o forno, recebe clientes. A padaria caseira nunca dorme, mas, curiosamente, é ali que a vida da família continua acordada.

Alexandre, agora com 13 anos, já herdou o gosto pela profissão. Estuda numa escola pública perto dali, a menos de dois quilômetros, e volta para casa cheio de planos. Quer ser padeiro. Quer continuar o negócio da mãe. E, se depender da demanda por pães, franceses, carecas, massas grossas, massas finas, o futuro está garantido. Mesmo com a inteligência artificial revolucionando profissões e automatizando meio mundo, até os computadores precisarão reconhecer uma verdade simples, pão não se digitaliza, pão se amassa, se cheira, se divide.

E é isso que Suzi faz, divide o que sabe, o que tem e o que aprende todos os dias. Ensina ao filho que dignidade não nasce pronta, se constrói. Ensina que a vida pode apertar como massa pesada, mas, com coragem, sempre cresce.

No fim, Suzi nos lembra que resiliência também é um tipo de fermento. E que ninguém deveria ter medo de reivindicar seus direitos, porque às vezes é exatamente diante de um tribunal que começa a receita de um novo destino.

Ela enfrentou, venceu e recomeçou. E, enquanto seus pães saem do forno antes do sol nascer, deixa para Alexandre, e para nós, uma lição que perfuma todo o bairro: é possível reescrever a própria vida com as mãos, desde que se tenha força para sovar a dor e transformar o que sobra em futuro.

 

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.